terça-feira, 11 de março de 2025

Planos de guerra: doutrinas militares e condicionantes estratégicas

Doutrinas militares

As doutrinas militares devem ser consistentes com a tecnologia e os recursos disponíveis. Estes devem ser proporcionados à instituição militar por forma a seja exequível atingir os objetivos estratégicos e militares superiormente definidos. Mas a instituição militar deverá estar atenta ao evoluir das tecnologias, já que estas trazem normalmente alterações nas doutrinas utilizadas. Embora seja possível, inicialmente, manter uma determinada tecnologia exclusiva de uma dada potência, mais cedo ou mais tarde, essa tecnologia encontrar-se-á no domínio de todas as outras potências que possuam os recursos necessários para a produzir ou adquirir no exterior. O mesmo sucede com as doutrinas militares e é dessa forma que o “primado da ofensiva” aparece largamente partilhado pelas grandes potências militares do início do século XX [MARRIL, 2014, § 1].

O tenente-coronel Louis Loyzeau de Grandmaison (1861-1915), chefe da Repartição de Operações (3ª Rep.) do Estado-Maior do Ministério da Guerra, publicou, em 1906, o livro “O treino da infantaria para o combate ofensivo” (Le dressage de l’infantarie en vue du combat offensif). Trata-se de uma obra inteiramente dedicada, como o título indica, ao treino da infantaria francesa para as operações ofensivas. Em 1911, ao tomar posse como Chefe do état-major général de l’Armée - já não era do Ministério da Guerra - o general Joffre deu ênfase ao papel da 3ª Repartição como centro doutrinário. Nesse mesmo ano, o coronel Grandmaison publicou “Duas cconferências destinadas aos oficiais do estado-maior do Exército” (Deux conférences faites aux officiers de l’état-major de l’Armée), onde colocou em destaque o primado da “vontade” caro a Clausewitz e pedra angular dos princípios da guerra do general Foch, isto é, impor a sua vontade ao inimigo, o que implicava atacar independentemente do que este faça [MARRIL, 2014, § 4 e 5]. Com esta linha de pensamento, ao serem desenvolvidos os planos, não eram considerados os modos de ação do inimigo e o estudo das relações de força. O reconhecimento deveria limitar-se a localizar as forças principais do adversário para o comandante, tomar a iniciativa e desencadear uma ação ofensiva, não deixando o inimigo reagir eficazmente em tempo oportuno. Grandmaison defendia que «a superioridade moral imposta ao inimigo pelo ataque devia implicar da sua parte uma atitude de pura reação, preservando desta forma a liberdade de ação do atacante.» [MARRIL, 2004, § 7]

O regulamento do serviço de campanha de 1913 insistia na vantagem da ofensiva. «Só a ofensiva consegue quebrar a vontade do adversário.» [MARRIL, 2014, § 10] A prioridade era atacar e o general Charles Mangin (1866-1925) traduziu da seguinte forma essa máxima: «fazer a guerra, é atacar.» Este regulamento privilegiava a moral e a vontade: «As batalhas são sobretudo lutas morais; a derrota é inevitável desde que cesse a esperança de vencer… Possivelmente, uma única grande batalha será suficiente para decidir a guerra.» [MARRIL, 2014, § 10] Este conceito ofensivo, a “ofensiva a todo o custo” (ofensive à outrance), não se limitou à França, mas, em maior ou menor grau, contagiou todos os exércitos modernos.

Na Alemanha, Alfred von Schlieffen «afirmava que a melhor forma de se defender era atacar. Sem renunciar à defensiva, ele estimava que não se deve nunca submeter passivamente à vontade dele (inimigo), mas antes, impor-lhe a nossa vontade fazendo a mais possível prova de agressividade.» E num outro testemunho: «Se temos uma frente vasta, disse ele, o inimigo tem toda a latitude para romper a fraca linha que se lhe opõe, no ponto por ele escolhido, utilizando todo o poder conferido pela sua superioridade. É a maldição que pesa sobre a defensiva. Em consequência, é preferível atacar ao invés de esperar.» [CARRIAS, 2010, p. 300] Da mesma forma, o manual de campanha britânico, de 1909, estabelecia que «no combate, o sucesso decisivo só pode ser obtido por uma ofensiva vigorosa. Todo o chefe que oferece o combate deve então estar decidido a, cedo ou tarde, tomar a ofensiva.» [MARRIL, 2004, § 12] No entanto, com maior prudência e tendo em conta a experiência adquirida na Guerra dos Bóeres, também preconizava que se a situação não fosse favorável ao ataque, seria preferível, quando possível, manobrar por forma a procurar uma situação mais favorável à ofensiva.

Os manuais mais modernos das Potências europeias defendiam, portanto, o primado da ofensiva. Esta tendência teve uma influência decisiva na tática, na organização e também nas estratégias escolhidas, ou seja, nos planos que foram postos em prática em 1914. Não pensavam os responsáveis políticos e militares que, pouco depois do ímpeto ofensivo inicial em que procuraram uma vitória rápida, as forças no campo de batalha europeu seriam incapazes de executar o que os seus regulamentos tanto defendiam. No entanto, o que se passou em seguida não pode ter sido uma completa surpresa, pois já em 1898, Bloch escrevera: «Na próxima guerra, todos estarão entrincheirados. Será uma grande guerra de trincheiras. Para o soldado, a pá será tão indispensável como a espingarda. […] Os soldados podem lutar como quiserem; a decisão final estará nas mãos da fome.» [citado em MARTELO, 2013, p. 205] Quando falámos dos desenvolvimentos tecnológicos, vimos que o grande poder de fogo das metralhadoras e da artilharia, as trincheiras e o arame farpado, entre outras tecnologias, proporcionavam grande vantagem à defesa.

As condicionantes estratégicas

Na Europa, o sistema de alianças em vigor formava dois blocos antagónicos: a Tríplice Aliança e a Tríplice Entente. Existiam outros acordos e alianças como, por exemplo, a aliança entre a Áustria-Hungria e a Roménia, mas foram aqueles dois blocos que definiram as principais estratégias no início e durante a guerra. A Tríplice Aliança (1882-1914) estava, na prática, reduzida à Aliança Dual (1879-1918) já que a Itália era o seu elo fraco e, além disso, sem perder os benefícios da aliança com a Alemanha, tinha estabelecido um acordo secreto com a França (1902). No entanto, a Tríplice Aliança baseava-se em tratados, ou seja, acordos solenes, formais, que impunham de forma explícita obrigações a serem cumpridas pelas partes que estabeleceram esse contrato. Já a Tríplice Entente era um bloco em que a sua estrutura assentava num tratado entre duas das partes envolvidas - a França e a Rússia, desde 1892 - mas em que a terceira Potência envolvida - o Reino Unido - estava ligada às outras duas apenas por uma Entente, isto é, um acordo informal com a França desde 1904 e com a Rússia desde 1907, mas que foi ganhando consistência à medida que era necessário definir posições nas crises que surgiram no início do século XX. Apesar do secretismo de grande parte dos acordos ou tratados firmados, eles não eram inteiramente desconhecidos das potências adversárias. 

A situação na Europa anterior à Primeira Guerra Mundial evidenciava vários focos de tensão que poderiam ser origem de um conflito entre as Grandes Potências. A Áustria-Hungria e a Rússia defendiam interesses por vezes antagónicos, nos Balcãs. Embora não o declarasse abertamente, a França mantinha um sentimento de revanche da derrota na Guerra Franco-Prussiana (1870-1871) e o objetivo de recuperar os territórios da Alsácia-Lorena. Após a Aliança Franco-Russa (1892), a Alemanha sentiu-se cercada, pois sabia que, em caso de conflito, teria de lutar simultaneamente em duas frentes: contra a França e contra a Rússia. Além disso, as tentativas de entendimento entre a Alemanha e o Reino-Unido também não deram resultado. O Reino Unido pretendia, a todo o custo, manter a supremacia naval. A Itália, embora aliada da Áustria-Hungria na Tríplice Aliança, continuava a ambicionar a recuperação dos territórios de cultura e língua italiana ainda dominados pelos austríacos, os chamados territórios irredentos.

As crises entre estas Potências sucederam-se e, com alguma surpresa por parte da Alemanha, tiveram como consequência o enfraquecimento da Tríplice Aliança e o reforço da Tríplice Entente. A crise de Agadir (1911) foi o último desses conflitos diplomáticos que ameaçou lançar as potências num conflito. A Rússia recuperava da sua derrota na Guerra Russo-Japonesa (1904-1905) e a França procurava soluções para contrabalançar a crescente fonte de recrutamento da Alemanha. É neste Império que alguns dos principais governantes assumiram que, a haver guerra, quanto mais cedo melhor porque em cada ano que passava os seus inimigos estavam mais fortes. Foi neste ambiente que se desenvolveram os planos de guerra utilizados no início da Primeira Guerra Mundial.


BIBLIOGRAFIA citada:

CARRIAS, Eugène, La Pensée Militaire Allemande, © 2010, Ed. Economica, Paris, 2010, ISBN 978-2-7178-5810-5.

MARRIL, Jean-Marc, «L’offensive à outrance: une doctrine unanimemente partagée par les grande puissances militaires en 1914» in Revue historique des armées, 274|2014, (https://journals.openedition.org/rha/7962).

MARTELO, David, Origens da Grande Guerra, © 2013, Edições Sílabo, Portugal, 2013, 339 p., ISBN 978-972-618-705-9.

Planos de guerra - tecnologias disponíveis

 No período anterior à Primeira Guerra Mundial registaram-se grandes avanços tecnológicos e as doutrinas militares tiveram de adaptar-se a essa evolução. Por outro lado, as doutrinas militares baseiam-se em parte na experiência adquirida noutros conflitos cuidadosamente estudados pelas Potências participantes ou não. Os Britânicos tiveram a experiência da Segunda Guerra dos Bóeres (1899-1902), os Russos tiveram uma má experiência na Guerra Russo-Japonesa (1904-1905) e todas as potências puderam observar o que se passou nas Guerras Balcânicas (1912-1913).

As trincheiras que caracterizaram a Frente Ocidental a partir de setembro de 1914 eram uma proteção coletiva organizada para enfrentar o crescente poder de fogo no campo de batalha. A guerra de trincheiras na Primeira Guerra Mundial não foi um fenómeno novo. Elas fizeram parte da guerra de cerco, quando os atacantes cavavam trincheiras para se protegerem do fogo dos sitiados. Foram utilizadas durante o Cerco de Sebastopol na Guerra da Crimeia (1853-1856) e na Guerra Civil Americana (1861-1865) durante os cercos de Vicksburg e Petersburg. Foram menos utilizadas na Guerra dos Bóeres (1899-1902) porque, ao contrário do que sucedia na Frente Ocidental na Europa, o terreno do teatro de operações na África do Sul era muito rochoso. As trincheiras foram também muito utilizadas na Guerra Russo-Japonesa (1904-1905). A guerra de trincheiras não foi, portanto, uma novidade em 1914. O que foi verdadeiramente genuíno na Primeira Guerra Mundial foi a escala e a duração da guerra de trincheiras. De igual forma, o arame farpado já era conhecido dos militares em 1914. Aliás, os militares portugueses foram os primeiros combatentes europeus a utilizar o arame farpado com fins defensivos (8 de setembro de 1895, Magul, Moçambique) [STAPLETON, 2013, p. 107]. A técnica de construção de trincheiras, a que devemos juntar o arame farpado e a pólvora sem fumo que permitia dissimular a posição do atirador são, entre outros, fatores que favorecem a defensiva.

As comunicações no teatro de operações são utilizadas fundamentalmente para encaminhar informação para os comandantes poderem fundamentar as suas decisões e para transmitir ordens aos comandos subordinados. A necessidade de os comandantes se manterem bem informados e fazerem chegar rapidamente aos destinatários as suas ordens foi sendo cada vez mais necessária à medida que as forças armadas se tornavam maiores e a guerra mais complexa devido à evolução da tecnologia e da tática. Em 1914, era possível comunicar não apenas por fio, mas também por radio (sem fios). Contudo, estes sistemas apresentavam muitas limitações. O sistema de fios não era adequado às operações ofensivas, que exigiam movimento, e o sistema sem fios era demasiado volumoso e pesado, razão por que inicialmente a sua utilização militar estava limitada aos meios navais. Contudo, quando os movimentos das tropas ficaram limitados pela guerra de trincheiras, o sistema sem fios começou a ser utilizado nos escalões mais elevados. Quando o fogo de artilharia danificava e cortava as comunicações por fio, apesar de enterradas, era necessário recorrer ao método utilizado desde a antiguidade: o estafeta. Só perto do final da guerra, as unidades da linha da frente e de escalão mais baixo começaram a dispor de rádios. Contudo, desde finais do século XIX que era possível comunicar entre continentes através dos cabos submarinos.

As comunicações telefónicas sem fios apresentavam o problema da segurança. As ondas rádio alcançavam o território inimigo o que obrigava a utilizar códigos ou sistemas de cifra. Por outro lado, as Potências beligerantes procuravam decifrar as comunicações inimigas. Estas preocupações não se colocavam apenas ao nível das operações militares, mas também ao nível estratégico. Todos os governos procuravam obter informações através da análise das comunicações das Potências adversárias. Os códigos e cifras, quando não eram suficientes para impedir os adversários de conhecer o teor das comunicações uns dos outros, pelo menos obrigavam a um trabalho de descodificação e decifração das mensagens que atrasava o conhecimento do seu conteúdo. No teatro de operações, no campo da tática, estas demoras podiam tornar o seu conhecimento inútil.

Em 1914, a metralhadora era uma arma relativamente recente. Na Guerra Civil Americana (1861-1865) foi utilizada a metralhadora Gatling, uma arma com vários canos rotativos movidos manualmente por uma manivela, com 363 Kg e que permitia atingir uma cadência de 60 tiros por minuto (tpm). A primeira metralhadora automática foi inventada em 1884 por Sir Hiram Maxim. A metralhadora Maxim foi adotada ou deu origem a outros modelos adotados por vários exércitos europeus. Um protótipo da metralhadora foi oferecido às Forças Britânicas que o empregaram na expedição ao sul do Egito de 1886 a 1890. A Guerra Russo-Japonesa (1904-1905) e as Guerras Balcânicas (1912-1913) foram os primeiros conflitos em que a metralhadora (já comercializada) foi utilizada, mas o seu número era pequeno e não tiveram um papel significativo no campo de batalha. Com 27,7 Kg permitia disparar 660 tpm. Em 1914, os diferentes exércitos equivaliam-se nas possibilidades dos diferentes modelos em uso e no número de metralhadoras pesadas previstas nos seus quadros orgânicos: uma divisão de infantaria dispunha em França ou na Alemanha de 24 metralhadoras pesadas; na Rússia, 16 a 32; na Grã-Bretanha, 24; na Áustria-Hungria, 32 [ELLIS & COX, 2005, pp. 231-232]. Este material tinha dois inconvenientes: primeiro, encravava com facilidade; depois pesava entre 40 a 60 Kg sem contar com as munições e outros acessórios. Só no decorrer da guerra apareceram metralhadoras mais ligeiras, isto é, com menos de 10 Kg.

Nos primeiros anos do século XX, a cavalaria era utilizada em ações de reconhecimento, como arma de choque ao carregar sobre posições inimigas e nos contra-ataques e para exploração do sucesso do ataque. Estas missões eram executadas a cavalo. Quando a guerra começou, não existiam alternativas para este tipo de ações e quando o terreno era montanhoso a sua ação ficava limitada. Quando a aviação militar começou a ser utilizada, as ações de reconhecimento que antes competiam à cavalaria, que podia atingir maiores distâncias que a infantaria e executar as missões com maior rapidez, foram frequentemente entregues aos militares da aeronáutica. Por outro lado, o crescente poder de fogo no campo de batalha teve como consequência a maior vulnerabilidade de cavalos e cavaleiros. Apenas a 15 de setembro de 1916, na Batalha do Somme (1 de julho a 18 de novembro de 1916), entrou ao serviço o primeiro carro de combate, o Mark 1, britânico.

Apesar da importância das metralhadoras, é a artilharia que detinha um lugar privilegiado. Na segunda metade do século XIX, as bocas de fogo de artilharia passaram a ser fabricadas em aço, com cano estriado e freios hidráulicos. As munições também evoluíram muito. «Entre meados do século XIX e 1914, o desempenho da artilharia tinha sido multiplicado por dez.» [AUDIN-ROZEAU, «Artillerie et mitrailleuses» in AUDOIN-ROUZEAU & BECKER, 2004, p. 257] Os exércitos estavam dotados essencialmente de peças de artilharia de campanha “de tiro rápido” de que o exemplo mais famoso foi a peça francesa “Matériel de 75mm Mle 1897” muitas vezes referida apenas como  “Soixante-Quinze”,  artilharia ligeira e com grande mobilidade, destinada a fornecer apoio de fogos imediato ao avanço da infantaria. As outras Potências dispunham de bocas de fogo idênticas. No entanto, a artilharia pesada viria a ter um papel importante contra posições fortificadas e na guerra de trincheiras. Os novos mecanismos para medição da direção e elevação das bocas de fogo e a possibilidade de os observadores avançados que transmitiam indicações para regular o tiro, permitiram desenvolver e aperfeiçoar as técnicas de tiro indireto, isto é, tiro executado sobre objetivos não observáveis da posição de onde era realizado o tiro. Os meios disponíveis para a comunicação entre os observadores avançados e as bocas de fogo eram os telefones de campanha, o que limitava as situações em que podiam ser utilizados.

Os avanços tecnológicos do armamento da infantaria e da artilharia e o crescente efetivo dos exércitos teve como consequência um aumento muito grande dos abastecimentos necessários para alimentar o combate. Para um número muito mais elevado de homens e armas eram necessárias mais munições, mais equipamentos, mais víveres e outros apoios. Isto significava que era necessário transportar para o teatro de operações e distribuir no campo de batalha um volume muito superior de recursos humanos, recursos materiais e toda a espécie de abastecimentos o que não era mais compatível com as antigas formas de transporte, os carros puxados por animais. Desde a campanha francesa de Itália (1859) que a via férrea desempenhava um papel essencial no transporte destes recursos. Mas o caminho de ferro não chega a todo o lado embora, em 1914, existisse na Europa Central uma excelente rede ferroviária. O transporte rodoviário começou aqui a ter uma grande importância, mas os equipamentos disponíveis e as infraestruturas são ainda frágeis e a sua capacidade não é comparável à dos recursos ferroviários.

«Em 1832, o general Lamarque informou a Câmara dos Deputados Francesa que a utilização estratégica do caminho de ferro conduziria a “uma revolução na ciência militar tão grande como a que tinha sido provocada pela invenção da pólvora”.» [BELLAMY, Christopher, «railways» in HOLMES, 2001, p. 752] Na Guerra Civil Americana (1861-1865) e nas Guerras da Unificação Alemã a utilização bem planeada da via férrea permitiu obter excelentes resultados no posicionamento das tropas. Na Guerra Russo-Japonesa, a linha férrea foi o único meio disponível para garantir uma linha de comunicações russa - muito longa e com muitas limitações - com o teatro de operações na Manchúria. Em 1914, as operações de mobilização e o transporte de tropas para as zonas de reunião, envolvendo efetivos tão elevados e um volume tão grande de recursos materiais e de abastecimentos, não teria sido possível sem recorrer aos transportes ferroviários.

No início do século XX, a marinha tinha sido beneficiada com desenvolvimentos importantes. Em 1906, a Royal Navy recebeu o HMS Dreadnought, o primeiro de um novo tipo de navio que deu o nome a esta nova classe. Eram navios de guerra revestidos a aço, com todas as armas de grande calibre e sistema de propulsão de turbina a vapor alimentada a carvão. Tratava-se de uma classe de navios poderosos, mas que eram ameaçados por três outras armas que tinham tido importantes desenvolvimentos no início do século XX: submarinos, torpedos e minas navais. Nenhuma destas armas era nova. Durante a Guerra Civil Americana (1861-1865), o H.L.Hunley da marinha dos Estados Confederados, foi o primeiro submarino a afundar um navio inimigo, o USS Housatonic, da União. É claro que se tratava de um sistema muito primitivo em que o sistema de propulsão baseava-se na força de braços da tripulação que faziam rodar um eixo que transmitia o movimento a uma hélice. Em 1914, a propulsão dos submarinos era obtida por um sistema diesel-elétrico. Os torpedos com propulsão autónoma existiam desde 1866, eram lançados de navios torpedeiros e, mais perto da guerra 1914-18, de barcos torpedeiros, muito mais ligeiros que os navios. As minas navais eram utilizadas com eficácia desde meados do século XIX.

A aviação estava a dar os primeiros passos e, portanto, não é de estranhar a importância que os balões e dirigíveis tinham no início do século XX. Apenas em 1911 os militares puderam dispor de aviões. Franceses e Alemães dispunham de maior número de aparelhos em 1914. No início da guerra, na linha da frente, a França dispunha de 150 aviões, a Alemanha 450, a Áustria-Hungria 48, a Rússia 224 e o Reino Unido 50 aviões do Royal Flying Corps e 91 do Royal Naval Air Service [ELLIS & COX, 2005, pp. 253-265]. Atendendo às limitações técnicas da época, a aviação militar restringia-se a missões de reconhecimento, ligação e observação de fogos de artilharia.


BIBLIOGRAFIA citada:

AUDOIN-ROUZEAU, Stéphane & BECKER, Jean-Jacques, Encyclopédie de la Grande Guerre, © 2004, Bayard, Paris, 2004, ISBN 2-227-13945-5.

ELLIS, John & COX, Michael, The World War I Databook, © 1993, Aurum Press, Great Britain, 2005, ISBN 1-85410-766-6.

HOLMES, Richard (Editor), The Oxford Companion to Military History, © 2001, Oxford University Press, New York, 2001, ISBN 0-19-866209-2.

STAPLETON, Timothy J., A Military History of Africa, volume 1, © 2013, Praeger, ABC-CLIO, Santa Barbara, California, USA, 2013, EISBN 978-0-313-39570-3.

Planos de guerra: guerra curta & guerra longa

 «Pensou-se durante muito tempo que a Grande Guerra, considerando como ela se desenvolveu, foi mal concebida, mal preparada, mal planeada. E isso aconteceu tanto do lado dos políticos e dos generais como dos jornalistas ou dos escritores, os quais, na sua grande maioria, teriam, nos anos que precederam a Grande Guerra, minimizado as dimensões da guerra futura. Desta estimativa por defeito nasceria a ideia de uma guerra curta» [KRUMEICH, Gerd, «Antecipations de la guerre» in AUDOIN-ROUZEAU & BECKER, 2004, p. 169]. A verdade é que existiam muitos avisos sobre o perigo de uma guerra longa, mas também muitas análises, bem ou mal fundamentadas, que conduziam à ideia de uma guerra curta.

Colmar von der Goltz (1843-1916), marechal-de-campo do exército alemão e escritor, publicou em 1883 o livro “A Nação em Armas” (Das Volk in Waffen), em que defendia a ideia de que, perante a impossibilidade de ganhar a guerra por uma batalha decisiva, as novas tecnologias aplicadas aos transportes e ao armamento permitiriam causar um desgaste sistemático sobre o adversário e encurtar a guerra. A mesma ideia foi desenvolvida por Friederich von Bernhardi (1849-1930), general alemão e historiador militar, no seu livro “A Alemanha e a Próxima Guerra” (Deutschland und der Nächste Krieg). Mas Bernhardi ia mais longe porque o seu livro assentava em ideias do Darwinismo Social e defendia que a Alemanha, com o seu dinamismo e aumento rápido da população, seria obrigada a fazer a guerra e que tinha o direito de o fazer.

No ano em que Friederich von Bernhardi publicou o seu livro, o general Alfred von Schlieffen (1833-1913), chefe do Estado-Maior General Alemão entre 1891 e 1905, publicou um artigo na Deutsche Revue intitulado «Sobre dos exércitos de milhões de homens» (Über die Millionenheere), em que afirmava que «a guerra de hoje é caracterizada pela vontade de obter uma decisão ampla e rápida. A incorporação de todos os homens capazes de utilizar armas, a dificuldade de os alimentar, o custo elevado do armamento, a paragem da produção agrícola e industrial, tudo isso exige uma decisão rápida.» [KRUMEICH, Gerd, «Antecipations de la guerre» in AUDOIN-ROUZEAU & BECKER, 2004, pp. 170-171] A generalidade dos generais alemães ou franceses pensavam da mesma forma que Schlieffen. Esta era uma forma de pensar diferente de Helmuth Karl Bernhard von Moltke (1800-1891), antecessor de Schlieffen no Estado-Maior General.

 Moltke previa, em 1890, que a próxima guerra poderia durar sete anos ou trinta porque os recursos de um estado moderno eram tão grandes que no caso de uma derrota militar continuariam a existir condições para manter a resistência ao adversário. O seu sobrinho, com o mesmo nome, Helmuth von Moltke (1848-1916), que assumiu as funções de Chefe do Estado-Maior General alemão em 1906, informou o Imperador Guilherme II, nesse mesmo ano, que a próxima guerra seria longa e que só terminaria quando as forças nacionais de um dos contendores se esgotarem. Avisou ainda que a guerra provocaria a exaustão do povo alemão, mesmo que a Alemanha saísse vitoriosa do conflito. Apesar de Moltke ter transmitido esta ideia a Guilherme II, o Estado-Maior General continuou a desenvolver planos numa linha de pensamento tradicional, para uma guerra curta que terminaria com uma batalha decisiva [TUCHMAN, 2004, p. 27]. Essa vitória rápida, pensava-se, requeria o máximo aproveitamento das novas tecnologias e permitiria a sobrevivência das economias europeias. «Estareis de regresso aos vossos lares antes que as folhas caiam», afirmava Guilherme II às suas tropas [TUCHMAN citado em MARTELO, 2013, p. 215].

Também em França se pensava que, havendo uma guerra entre a França e a Alemanha, que arrastaria inevitavelmente outras Potências, essa guerra seria curta. Era o caso do general Ferdinand Foch (1851-1929) que defendia em "Princípios da Guerra" que «os exércitos que poremos em movimento serão exércitos de civis arrancados às suas famílias. A guerra trará com ela a penúria; a vida cessará; daí a consequência de a guerra não poder durar muito tempo.» [citado em MARTELO, 2013, p. 213] Este pensamento era partilhado pelo general Joseph Joffre (1852-1931). No regulamento "Conduta das Grandes Unidades", de 1913, pode-se ler: «A natureza da guerra, o volume das forças envolvidas, as dificuldades ao seu reabastecimento e a interrupção da vida económica e social do país, concorrem para ser procurada uma decisão no mais curto espaço de tempo possível, de modo a, rapidamente, pôr fim ao conflito.» [citado em MARTELO, 2013, pp. 206-207] Também na Grã-Bretanha se tinha generalizado a ideia de que a guerra seria curta, mas não era essa a opinião do marechal-de-campo Horatio Herbert Kitchener (1850-1916) que desempenhou as funções de Secretário de Estado da Guerra a partir de 5 de agosto de 1914.

Em 1898, o banqueiro polaco Jan Gotlib Bloch (1836-1902) publicou uma obra em seis volumes com o título "A Guerra do Futuro", em que pretendia demonstrar, juntando argumentos económicos contra a guerra e os grandes desenvolvimentos, entretanto verificados na qualidade dos recursos disponíveis, que esta se tornaria obsoleta. «Não haverá guerra no futuro porque ela tornou-se impossível, agora que é claro que a guerra significa suicídio.» [MacMILLAN, 2013, p. 270] Bloch entendia que as Potências não dispunham de capacidade material para manter uma guerra numa escala tão grande como a que ele previa e se verificou em 1914-1918, mas o empenhamento de milhões de homens nos exércitos modernos criaria um descomunal campo de batalha tornando difícil ou até impossível de resolver rapidamente um conflito dessa natureza.

Em 1909 foi publicado um ensaio de Ralph Norman Angell (1872-1967) intitulado A Ilusão Ótica da Europa (Europe's Optical Illusion). No ano seguinte, a mesma obra foi aumentada e revista e publicada com outro título: A Grande Ilusão (The Great Illusion). Norman Angell defendia que o custo económico da guerra era tão grande que ninguém teria nada a ganhar em iniciar um conflito cujas consequências seriam desastrosas e este facto fazia com que uma guerra geral europeia fosse muito improvável. No entanto, se a guerra tivesse início seria curta. [TUCHMAN, 2004, pp. 11-12].

Apesar das análises mais pessimistas sobre a guerra futura, a generalidade das pessoas esperava que a próxima guerra fosse curta. Esta esperança não resultava inteiramente de uma análise objetiva da situação, mas era mais uma expectativa ilusória mantida numa tentativa de afastar a ideia contrária, o medo de uma guerra longa que alguns previam como catastrófica para qualquer das Potências participantes no conflito. As implicações no planeamento são imensas. Se, no que respeita às operações militares, não é possível planear minuciosamente muito para além das ações iniciais. No entanto, dada a incerteza da conduta dessas ações e as complexas operações logísticas que lhes estão associadas, as ações a desenvolver sobre os recursos a utilizar são de volume e até de natureza diferente para uma guerra que se prevê ser curta ou uma guerra longa. O empenhamento de toda a sociedade deverá ser muitíssimo mais intenso numa guerra longa.


BIBLIOGRAFIA citada:

AUDOIN-ROUZEAU, Stéphane & BECKER, Jean-Jacques, Encyclopédie de la Grande Guerre, © 2004, Bayard, Paris, 2004, ISBN 2-227-13945-5.

MARTELO, David, Origens da Grande Guerra, © 2013, Edições Sílabo, Portugal, 2013, 339 p., ISBN 978-972-618-705-9.

TUCHMAN, Barbara W., The Guns of August, © 1962, Ballantine Books, New York, 2004, ISBN 0-345-47609-3.


Planos de guerra

 As ações militares da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) não foram iniciadas de forma inopinada, mas seguiram planos que as Potências envolvidas tinham desenvolvido. Estas ações militares foram precedidas de outras, aplicadas pelos respetivos governos no campo da diplomacia, mas também, a nível interno, na preparação das forças armadas e dos numerosos e diversificados recursos necessários para apoiar as ações militares. Nos acontecimentos que antecederam o desencadear da guerra, os atores principais foram os líderes políticos, mas competia aos militares, de acordo com as orientações recebidas do poder político, prepararem as forças armadas para as prováveis situações de conflito então identificadas. Em 1914, tal como acontece hoje, foi o poder político a decidir a guerra. Em 1918, da mesma forma, foi o poder político que decidiu o fim da guerra. Durante o conflito foi o poder político que providenciou os recursos necessários às suas forças armadas. Estes processos não são possíveis sem uma íntima ligação entre os líderes políticos e militares porque, quando a relação com os outros Estados se deteriora ao ponto de desencadear um conflito armado, são as forças militares que assumem o papel de maior relevo. Nas potências intervenientes na Primeira Guerra Mundial existiam regimes políticos muito diferentes. Só existia uma república, a França, mas as próprias monarquias apresentavam diferenças muito grandes, como eram os casos, por exemplo, da monarquia britânica, democrática, e das monarquias russa e alemã, autocráticas. Estas diferenças ditaram diferentes formas de relacionamento entre o poder político e a instituição militar.

As guerras são, portanto, decididas pelo poder político. Os planos para a guerra são desenvolvidos pelos militares, de acordo com as diretivas estabelecidas pelo poder político e os recursos postos à sua disposição. No início do século XX, líderes políticos e militares «avaliaram as situações, definiram as ameaças, consideraram as alternativas e escolheram a guerra como a opção mais apropriada, iniciando a ação ou respondendo à iniciativa de outra nação. Em cada caso, ao avançarem em direção àquela declaração formal (de guerra), os participantes tinham as suas agendas estratégicas específicas.» [HAMILTON, Richard F. «War Planning: Obvious Needs, Not So Obvious Solutions» in HAMILTON & HERWIG, 2010, p. 1] Os planos foram desenvolvidos por forma a enquadrarem-se nestas agendas estratégicas.

Um plano é uma definição de recursos e da forma de os utilizar para atingir um dado objetivo. Esta definição é válida para a generalidade dos planos, sejam eles da responsabilidade dos governos ou das chefias militares. Para o desenvolvimento dos planos, é necessário utilizar recursos humanos, materiais, financeiros, infraestruturas e também definir um caminho, uma estratégia, para, utilizando esses recursos, atingir o objetivo pretendido. Nas vésperas da Primeira Guerra Mundial, as Grandes Potências tinham planos para fazerem face a uma ou várias hipóteses de guerra, planos que foram desenvolvidos sobre considerações de ordem política e militar.

Os planos existentes tinham sido desenvolvidos tendo em conta a situação internacional, as ameaças percebidas, as alianças e os recursos disponíveis. Esses planos foram desenvolvidos por cada um dos respetivos Estados-Nação com a finalidade de garantirem a salvaguarda dos seus interesses vitais. O desenvolvimento desses planos exigiu uma estreita coordenação entre as lideranças políticas e militares. São planos muito complexos, de longo, médio e curto prazo, cuja execução exige um grande empenhamento não apenas das instituições militares, mas de toda a sociedade.

Aspirações, interesses e objetivos

Cada nação tem as suas "aspirações nacionais". Algumas são óbvias: manter a independência, a liberdade, garantir a segurança e o bem-estar da nação. No entanto, as particularidades de cada nação determinam aspirações específicas. Desde 1871 que os Franceses aspiravam a recuperar os territórios da Alsácia-Lorena perdidos para o recém-formado Império Alemão em consequência da Guerra Franco-Prussiana (1870-1871). No final do século XIX os Portugueses aspiraram ao domínio do território africano entre Angola e Moçambique, projeto que ficou conhecido como Mapa Cor-de-Rosa. Em geral, as aspirações nacionais são «definidas sem grande objetividade e consolidação, mais em termos idealistas e utópicos, muitas vezes relacionadas com os desejos de readquirir antigas glórias. São frequentemente acentuadas e manipuladas psicologicamente por entidades políticas com fins de mobilização popular a favor ou contra certas finalidades políticas gerais ou sectoriais.» [LOUREIRO DOS SANTOS, 1983, pp. 45-46]

Os Governos, como nos casos da França e de Portugal, têm a responsabilidade de identificar os "interesses nacionais" que designam aquilo que o Estado-Nação pretende salvaguardar. Quando se trata de manter a independência, a liberdade, garantir a segurança e o bem-estar da nação, não oferece grande dúvidas de que se tratam de aspirações da Nação que o Estado identifica como interesses a salvaguardar. A independência do Estado-Nação é um interesse nacional vital ou primário. No caso da França, no período anterior à Primeira Guerra Mundial, a recuperação dos territórios da Alsácia-Lorena era uma aspiração nacional que o Estado não podia identificar como interesse nacional vital já que a sobrevivência da França enquanto Estado-Nação não era posta em causa pelo status quo estabelecido em 1871. Tratava-se, contudo, de um interesse nacional não vital e que os sucessivos governos franceses não tornaram nunca explícitos.

Os interesses nacionais devem ser salvaguardados e compete ao Estado preparar-se para agir relativamente a esses interesses. É estudada a situação, são identificadas as ameaças aos interesses nacionais, se as houver, e são estudadas as modalidades de ação possíveis. Estas visam atingir "objetivos nacionais", isto é, agir para chegar a determinados resultados (objetivos). Alguns destes objetivos só podem ser atingidos a longo ou médio prazo. São os "objetivos nacionais longínquos" como os que se encontram, por exemplo na Constituição da República Portuguesa, na alínea a) do seu Artigo 9º, que trata das tarefas fundamentais do Estado: «Garantir a independência nacional e criar as condições políticas, económicas, sociais e culturais que a promovam.» Outros objetivos, de médio e curto prazo, são chamados "objetivos nacionais próximos" ou "atuais". A forma como a independência nacional é salvaguardada, para além do que se encontra definido no texto constitucional, define-se de forma mais concreta e explícita em objetivos de curto prazo que constam nos programas governamentais. Alguns objetivos são de natureza secreta, como é o caso dos objetivos relacionados com a segurança do Estado-Nação.

Quando os interesses são conflituais, isto é, quando a defesa dos interesses de um Estado-Nação põe em causa a defesa dos interesses de outro Estado-Nação, podem dar origem a uma crise internacional. Isto significa que existe a probabilidade do emprego da força, ou seja, de ser desencadeado um conflito armado. Embora as forças militares sejam normalmente utilizadas no início da crise como fator dissuasor, para aumentar a credibilidade da posição assumida por cada um dos intervenientes, a vontade de um Estado-Nação resistir ao que considera uma ameaça por parte de outro Estado-Nação, pode levar ao desencadear de ações militares concretas. «Como a resposta à crise é do âmbito da estratégia global (não é apenas uma questão militar) a ação militar deve estar intimamente coordenada com a ação política global. Numa crise, esta íntima ligação deve ser assegurada a todo o custo, já que são estreitas as margens a admitir quanto a desvios, porquanto o perigo da guerra ronda permanentemente os intervenientes da crise, e as ações militares de uma das partes (exercícios, demonstrações de força, mobilização de forças) são aquelas que mais incitam a outra parte à escalada da violência.» [LOUREIRO DOS SANTOS, 1983, pp. 109-110]

Estratégias

Todas as ações desenvolvidas pelo Estado por forma a encontrar resposta para as aspirações nacionais e para a definição e salvaguarda dos interesses nacionais exigem um planeamento que tem a finalidade de definir objetivos longínquos e atuais (ou próximos) e que deve definir a forma como esses objetivos são alcançados. Trata-se do planeamento estratégico, da definição de estratégias nacionais. Os objetivos longínquos, ou seja, de médio e longo prazo, devem ter em atenção os recursos atuais à disposição do Estado, mas também obrigam a uma definição de quais os recursos a obter e a desenvolver para permitir que esses objetivos sejam atingidos. Os objetivos atuais devem ser definidos tendo em atenção os recursos imediatamente disponíveis e a sua definição deve enquadrar-se no caminho a percorrer para atingir os objetivos longínquos. Enquanto no primeiro caso, o fator tempo permite adequar os recursos aos fins, no segundo caso são os fins, os objetivos, que devem ser adequados aos recursos disponíveis. Desta forma, define-se uma estratégia global à qual se submetem as estratégias sectoriais (economia, educação, saúde, militar, etc.). Estas estratégias devem ser materializadas através de planos [LOUREIRO DOS SANTOS, 1983, pp. 269-276].

É neste âmbito que os órgãos de planeamento no Ministério da Defesa – ou da Guerra, como então se chamava – desenvolvem os seus planos definindo para este sector os objetivos de longo, médio e curto prazo. Os especialistas políticos e militares aos mais altos níveis desenvolvem estratégias e planos dedicados à segurança nacional, planos que aplicam as várias formas de poder nacional, tanto em tempo de paz como em tempo de guerra. Os ministros da Defesa ou da Guerra, juntamente com os seus conselheiros e os líderes militares desenvolvem "estratégias militares nacionais" que recorrem às forças armadas para atingirem objetivos nacionais de carácter militar. Devem então os líderes militares, com os seus estados-maiores, estabelecer os planos de guerra que, embora da sua responsabilidade imediata, exigem uma estreita coordenação com o Ministério da Defesa, devendo este, no que lhe concerne, fazer a coordenação com outros ministérios.

O processo segundo o qual se desenvolvem estratégias militares e planos de guerra nasce, como vimos quando falámos das aspirações nacionais, na própria Nação e a sua realização exige uma coordenação estreita entre vários ministérios e entre o poder político e as lideranças militares. Trata-se de um processo que pode ser esquematizado em seis passos [COLLINS, 2002, pp. 5-9]:

1º passo – Definição dos interesses nacionais. Estes, no que respeita à Segurança ou Defesa, podem ser definidos para preservar a independência e integridade territorial do Estado-Nação, mas também podem procurar expandir a jurisdição do Estado sobre outros territórios ou nações. No período anterior à Primeira Guerra Mundial, o Império Austro-Húngaro adotou uma política de Segurança baseada na expansão da sua jurisdição sobre territórios nos Balcãs.

2º passo – Identificação das ameaças – A natureza, a iminência e a intensidade das ameaças percebidas, determinam o que pode e deve ser feito relativamente à salvaguarda dos interesses nacionais contra ameaças presentes ou previstas, externas ou internas. Primeiro, os serviços de informações fazem uma estimativa das capacidades dos inimigos (o que é que os oponentes podem fazer) e depois procuram calcular as suas intenções (qual a modalidade de ação do inimigo parece ser a mais provável).

3º passo – Identificar os objetivos chave – Priorizar de forma adequada os objetivos de curto, médio e longo prazo, que são válidos por algumas semanas ou até uma década ou mais. A Áustria-Hungria terá feito uma identificação correta das ameaças que punham em causa a coesão do seu Império, mas identificou mal os objetivos chave e, sobretudo, formulou uma estratégia errada que, em vez de uma guerra localizada, gerou um conflito mundial. A Rússia, na defesa dos seus interesses, manteve durante muito tempo um objetivo estratégico: controlar os Estreitos do Bósforo e Dardanelos, o que lhe daria acesso ao Mediterrâneo

4º passo – Formular estratégias – A formulação de estratégias é a arte e ciência da escolha de modalidades de ação. Os responsáveis pelo desenvolvimento das estratégias utilizam teorias e conceitos que, no seu entender, são as que melhor permitem potenciar o poder nacional para atingir os objetivos.

5º passo – Atribuir recursos – Não vale a pena formular estratégias para as quais não existem nem se prevê que venham a existir recursos suficientes, sejam eles de que natureza forem. No período anterior à Primeira Guerra Mundial, os Alemães compreenderam que não conseguiriam ter uma marinha de guerra com a dimensão da Royal Navy e, sendo assim, adotaram uma estratégia que lhes exigia menos recursos (ver a Teoria do risco de Tirpitz no artigo «Planos de guerra na Alemanha - a questão naval»).

Responsabilidades políticas e militares

Forças armadas eficientes conseguem obter o máximo "poder de combate" dos recursos que o poder político põe à sua disposição. O poder de combate é a capacidade para destruir o inimigo e, simultaneamente, limitar os danos que ele nos possa infligir. Os recursos que o poder político deve disponibilizar são de ordem financeira, o acesso à capacidade científica da Nação, a uma indústria militar capaz de satisfazer as necessidades das forças armadas na execução das estratégias superiormente aprovadas e recursos humanos suficientes em quantidade e qualidade para a execução dessas estratégias. Compete ao poder político controlar a conversão desses recursos em capacidades militares. Este processo varia com o regime político vigente. No Reino Unido, em 1914, o poder político tinha um controlo efetivo sobre as suas forças armadas e, antes de chegarem aos teatros de operações, os mecanismos de decisão estavam quase inteiramente fora do alcance dos militares. Já na Alemanha, na mesma época, o Chefe do Estado-Maior General – o comandante das forças militares terrestres e dos ainda escassos recursos aéreos – respondia diretamente perante o kaiser. Neste último caso, o poder político – governo, parlamento – ficavam em grande parte perante o facto consumado.

Neste processo, é importante a forma como a elite política vê a atividade militar e como aceita a opinião dos líderes militares. Da visão política do papel das forças armadas e da capacidade dos chefes militares para influenciarem os líderes políticos depende em grande parte a eficácia da organização militar e este não é um tema que deva ser tratado apenas em caso de guerra. A instituição militar, quando afetada por uma moral baixa, por falta de recursos humanos em especial no seu aspeto qualitativo, por falta dos armamentos e equipamentos adequados ou por outras razões, necessita tempo para recuperar as condições que lhes permitam, de forma eficaz, alcançar os objetivos que lhes foram superiormente impostos. Nesse sentido, o poder político deverá proporcionar o apoio financeiro necessário ao seu normal funcionamento e deverá proporcionar acesso aos recursos industriais e tecnológicos ou aos equipamentos e armamentos adquiridos no estrangeiro [MILLETT & MURRAY, 2010, pp.4-6].

Para além destas preocupações de natureza política, existe um outro nível de ação onde políticos e militares deverão coordenar de forma ainda mais estreita, havendo aqui um equilíbrio na distribuição de responsabilidades: o planeamento estratégico, isto é, o planeamento para o emprego das forças armadas nacionais quando é necessário assegurar pela força a salvaguarda dos interesses nacionais definidos pelo poder político. Neste âmbito, existem questões que requerem a resposta coordenada das lideranças políticas e militares [MILLET & MURRAY, 2010, pp. 6-12]:

       Os objetivos estratégicos militares asseguram os objetivos nacionais? Tem de haver consistência entre os planos estratégicos e os fins políticos que os norteiam.

       Todas as estratégias envolvem riscos. A questão que se coloca é saber se esses riscos são consistentes com os objetivos definidos ou, por outras palavras, se as consequências de um fracasso serão proporcionais à importância dos objetivos a alcançar.

       Quando o poder político define os objetivos políticos nacionais deve ter em conta que terão de existir condições para garantir que, da parte militar, possam ser atingidos os objetivos militares que inevitavelmente deverão ser definidos de forma consistente com os objetivos políticos. A definição de objetivos políticos nacionais e objetivos estratégicos militares não pode ser um processo apenas hierárquico, mas deverá também ser interativo.

       Os militares deverão ter em atenção e alertar o poder político para a necessidade de a força militar existente ter a dimensão, estrutura e capacidades adequadas aos objetivos estratégicos militares que terão de ser definidos em função dos objetivos nacionais.

       Com a mesma preocupação da alínea anterior, a definição dos objetivos deverá ser consistente com as estruturas logísticas militares e a base industrial e tecnológica da defesa.

       As forças armadas atuam nos teatros de operações, normalmente em conjunto com os seus aliados. É, portanto, necessário que exista uma integração entre os objetivos estratégicos militares das forças aliadas.

A um nível quase inteiramente militar, é importante analisar, selecionar e desenvolver conceitos e doutrinas para o emprego das forças com a finalidade de atingirem os objetivos estratégicos no teatro de operações. A atividade militar operacional envolve a análise, planeamento, preparação e conduta das ações militares. As decisões tomadas na área operacional são condicionadas pela missão, natureza do inimigo e dos seus prováveis objetivos, terreno, logística, forças nacionais e aliadas e o tempo disponível para o cumprimento da missão. Também a este nível, portanto, é necessário ter em atenção um conjunto de requisitos para que as forças militares possam atuar eficazmente [MILLET & MURRAY, 2010, pp. 12-19]:

       Os conceitos operacionais e as decisões da organização militar são consistentes com a tecnologia disponível? Estará esta tecnologia a ser devidamente aproveitada? Estará a organização militar em condições de aceitar novas tecnologias que implicam alterações nos conceitos e doutrinas operacionais ou táticas?

       A organização militar dispõe dos meios capazes de garantir o apoio das operações com sistemas de informações, de comunicações ou administrativo-logístico adequados? Sem os apoios desta natureza a capacidade de combate tende a anular-se.

       Os conceitos operacionais da organização militar deverão ser consistentes com os objetivos estratégicos que lhe são impostos. Após ter terminado a guerra em África, em 1974, o Exército Português teve que rever os seus conceitos operacionais e a suas doutrinas táticas a fim de se integrar de forma consistente nas forças europeias da NATO.

Certamente que existem outras questões que poderiam ser apontadas como essenciais em todo este processo do planeamento militar. O que acima foi mencionado aplica-se em todas as organizações militares, mas dando maior peso a um ou outro fator conforme a época que analisamos, o sistema político implantado ou o modelo de organização militar adotado. No entanto, estes fatores servem perfeitamente de referência para uma análise do planeamento em cada uma das Grandes Potências que iniciaram a Primeira Guerra Mundial.


BIBLIOGRAFIA citada:

COLLINS, John M., Military Strategy, Principles, Practices, and Historical Perspectives, © 2002, Brassey's Inc., United States of America, primeira edição, ISBN 1-57488-430-1.

HAMILTON, Richard F. & HERWIG, Holger H. (Editores), War Planning 1914, © Cambridge University Press, New York, 2010, ISBN 978-0-521-11096-9.

LOUREIRO DOS SANTOS, José Alberto, Incursões no Domínio da Estratégia, © Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1983.

MILLETT, Allan R. & MURRAY Williamson (Editores), Military Effectivness, Volume 1, The First World War, © 1988, Cambridge University Press, New York, 2010, ISBN 978-0-521-51997-7.


A consolidação do sistema de alianças

 

Entre 1912 e o verão de 1914, a coesão da Tríplice Entente foi posta à prova várias vezes, não apenas devido aos conflitos que então se verificaram, as Guerras Balcânicas em 1912-1913 (ver o texto «Breve História dos Balcãs até 1914» em http://www.oespacodahistoria.com/index.php/200-primeira-guerra-mundial-nos-balcas-ate-1914), mas também porque foram tomadas iniciativas diplomáticas nesse sentido. Aliás, estas últimas foram determinantes para o reforço dos laços da Entente enquanto aqueles conflitos foram mantidos como regionais.

Das crises anteriores – Bósnia (1908), Marrocos (1911-1912) e Líbia (1911-1912, as Potências da Entente extraíram as suas conclusões. Em 1908, o apoio da França à Rússia não foi mais que simbólico. Na crise de 1911-1912, a principal intervenção da Rússia foi no sentido de pressionar a França a aceitar um compromisso com a Alemanha. Já a invasão da Líbia pela Itália não teve repercussões tão graves como as crises anteriores. Em fevereiro de 1912, o Governo russo propôs ao Governo francês uma reunião para serem esclarecidas as posições a tomar por ambas as partes em caso de nova crise. Raymond Poincaré (1860-1934), primeiro-ministro de França de 14 de janeiro de 1912 a 21 de janeiro de 1913, sabia que, se surgisse outra crise idêntica à de Marrocos (1911-1912) e tendo em conta que qualquer crise deste género podia rapidamente levar a um conflito com a Alemanha na Europa, iria necessitar do apoio claro da Rússia, isto é, da certeza da execução das medidas previstas na aliança franco-russa de 1892. Só desta forma, a França estaria em condições de fazer frente à Alemanha.

Se a França esperava obter um claro apoio da Rússia numa futura crise, então devia estar preparada para proceder de igual forma em relação à sua aliada, o que implicava apoiar a política da Rússia no Médio Oriente. A política seguida pelo Governo francês criou um clima de confiança entre este e o Governo russo. Alexandre Izvolsky, que tinha desempenhado o cargo de ministro dos Negócios Estrangeiros russo de 1906 a 1910, era agora embaixador russo em Paris e, em setembro de 1912, informou o seu Governo que «se a Rússia se visse envolvida numa guerra com a Áustria como resultado de um ataque da Áustria à Sérvia, e se isso levasse então à intervenção da Alemanha, a França reconheceria o casus fœderis». Contudo, o Governo de Poincaré estava empenhado em evitar que a Rússia agisse por forma a envolver-se num conflito nos Balcãs ou no Médio Oriente. Mais de uma vez, a França pressionou a Rússia e a Sérvia para evitar uma guerra com a Áustria [SCHMITT, 1945, pp. 94-95].

Apesar da prudência mostrada pela França, a aliança franco-russa perdia o seu carácter passivo e os respetivos estados-maiores reuniram-se anualmente para reverem os seus planos de ação comum em caso de guerra. No Verão de 1912, as duas Potências assinaram uma convenção naval. Pelo seu lado, o Reino Unido também agiu por forma a estreitar os laços com os seus parceiros da Tríplice Entente. Antes, porém, o Secretário de Estado da Guerra britânico, Richard Burned Haldane (1856-1928) explorou a possibilidade de um acordo com a Alemanha em conversações que manteve com os governantes alemães, em Berlim, em 1912. Os Alemães estariam dispostos a abrandar o seu programa de construção naval se o Reino Unido estabelecesse um acordo em que garantia a neutralidade no caso de a Alemanha se envolver numa guerra, o que a acontecer seria contra a França e a Rússia. O Almirantado Britânico concluiu que as concessões que os Alemães ofereciam não eram suficientes e, por outro lado, a Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros não desejava comprometer-se com uma neutralidade que implicaria sacrificar a Entente com a França ou com a Rússia.

O Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros britânico, Sir Edward Grey, apresentou uma proposta de acordo segundo a qual o Governo do Reino Unido declarava que nunca tomaria a iniciativa nem se juntaria a um ataque lançado contra a Alemanha sem provocação desta. «A agressão à Alemanha não é o objetivo nem faz parte de qualquer tratado, acordo ou combinação da qual o Reino Unido faz parte atualmente, nem o Reino Unido se tornará parte de algo que tenha esse objetivo.» [SCHMITT, 1945, p. 90]. Os governantes alemães consideraram insuficientes estas garantias e as conversações (a Missão Haldane) foram dadas por terminadas. O Governo alemão prosseguiu com o seu programa naval e os britânicos transferiram os seus navios do mediterrâneo para o Mar do Norte a fim de manter a supremacia naquela região. Em compensação, a França reforçou a sua força naval no Mediterrâneo com a frota sediada em Brest, na Bretanha. Desta forma evitava-se a supremacia das forças navais da Tríplice Aliança na região – Itália e Áustria-Hungria. Para estas disposições poderem ser aplicadas em segurança, o Governo britânico deveria comprometer-se a defender as costas norte da França. Nesse sentido foi trocada correspondência e, embora concordando com os argumentos franceses, o Governo britânico não foi além de um acordo de princípios que não impunha aos britânicos mais que a obrigação de decidir conforme as circunstâncias.

As relações do Reino Unido com a Rússia não eram tão estreitas como as que tinha desenvolvido com a França. Durante as Guerras dos Balcãs (1912-1913), a diplomacia britânica tentou sempre conciliar os interesses russos e austríacos. Da mesma forma, no Médio Oriente, Sir Edward Grey não apoiou os protestos russos quando, no inverno 1913-1914, os alemães enviaram uma missão militar para a Turquia. Por estas razões, na primavera de 1914, Sazonov sugeriu que a Tríplice Entente fosse transformada numa aliança formal. Embora o Governo britânico não estivesse na disposição de dar esse passo por questões de política interna, concordou em estreitar o relacionamento entre as duas Potências e foram iniciadas conversações entre os almirantados britânico e russo. Da parte do Reino Unido, houve sempre grandes desconfianças relativamente à Rússia. Uma minuta de 20 de julho de 1914, da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros britânica, afirmava: «A Rússia é uma Potência formidável e tornar-se-á cada vez mais forte. Esperemos que as nossas relações com ela continuem a ser amigáveis.» [SCHMITT, 1945, p. 99]

Apesar de algumas desconfianças e de o Reino Unido insistir em não transformar os acordos com a França e a Rússia num sistema de alianças, as Potências da Entente chegaram a julho de 1914 mais unidas que nunca. Era possível ver a mesma tendência entre as Potências da Tríplice Aliança. Apesar dos conselhos de moderação, da Alemanha para a Áustria-Hungria, esta não deixou de receber garantias de que, em caso de guerra contra a Sérvia, teriam o apoio da Alemanha. A Tríplice Aliança foi renovada em 1912 e a Itália colocou-se ao lado da Áustria-Hungria em oposição às pretensões da Sérvia em obter uma saída para o Adriático. As Potências da Tríplice Aliança negociaram uma convenção naval, em vigor desde 1 de novembro de 1913, para derrotarem as frotas inimigas e obterem o controlo naval do Mediterrâneo. Em março de 1914, a Itália e a Alemanha estabeleceram um acordo segundo o qual, em caso de guerra com a França, a Itália enviaria para a Alemanha três Corpos de Exército e duas Divisões de Cavalaria. Com a corrida aos armamentos que se verificou no início do século XX, os exércitos das Potências da Tríplice Aliança estavam mais fortes, muito em especial o da Alemanha.

A Europa estava assim dividida em dois blocos rivais, militarmente mais fortes a cada ano que passava. Apesar de se encontrarem em blocos diferentes, as Potências não deixaram de continuar a tentar acordos para a redução de armamentos ou de cooperar para evitar o alastramento de conflitos. Tal foi o caso das Guerras Balcânicas em que a Alemanha e o Reino Unido agiram por forma a moderar as intenções da Áustria e da Rússia. A Alemanha e o Reino Unido estabeleceram também acordos no que respeita às colónias em África e ao Caminho de Ferro de Bagdade. Com a França, a Alemanha chegou a acordo, em fevereiro de 1914, sobre as respetivas esferas de influência económica na Turquia. Os Franceses não tinham esquecido a Alsácia-Lorena, mas os tempos tinham mudado. O embaixador alemão em Paris escrevia, em fevereiro de 1914: «A ferida de 1871 ainda arde no coração de todos os franceses, mas nenhum está disposto a arriscar o seu pescoço ou o dos seus filhos pela questão da Alsácia-Lorena.» [SCHMITT, 1945, p. 102]


BIBLIOGRAFIA citada:

SCHMITT, Bernadotte E., Triple Alliance and Triple Entente, © 1934, Henry Holt and Company, New York, 1945.


A invasão da Líbia

 

O território que hoje constitui a Líbia esteve dividido durante muito tempo em duas prvíncias:

  • Tripolitânia, ao longo da costa ocidental, com a capital em Tripoli;
  • Cirenaica, ao longo da costa oriental, com a capital em Bengazi.

Estes eram territórios costeiros. O interior, maioritariamente deserto, era conhecido como Fazzan e, até ao século XX fugiu ao controlo administrativo de Tripoli, a capital de todo este conjunto (atual capital da Líbia). As guarnições militares otomanas que no início do século XX ainda existiam na região estavam localizadas ao longo da costa.

Este território tinha sido capturado pelos Otomanos em meados do século XVI. Quando o Egito passou a ser controlado pelos Britânicos, a Líbia ficou isolada do resto do Império. No final do século XIX, o território foi objeto de competição dos interesses franceses e italianos, tal como acontecera com a Tunísia que, em 1881, foi ocupada pelos Franceses. Com a ocupação da Tunísia, muitos italianos estabeleceram-se na Líbia e ali fizeram os seus investimentos. Tratavam-se, pois, de investimentos feitos por uma Potência europeia - a Itália – num território que, embora gozasse de uma grande autonomia, pertencia ao Império otomano.

As relações entre o Reino de Itália e o Império Otomano começaram a deteriorar-se quando os italianos que viviam em Tripoli recusaram aceitar a soberania judicial otomana. Noutras regiões, por exemplo no Egito ou em Marrocos, os cidadãos europeus ali residentes estavam sujeitos a um tratamento jurisdicional diferenciado dos naturais da região. Em algumas regiões otomanas onde a presença europeia era mais antiga e mais desenvolvida existia o sistema das capitulações que, para além de várias vantagens a nível económico, atribuía aos cidadãos europeus a faculdade de se manterem sob a jurisdição dos respetivos consulados.

A Itália já tinha sondado as outras Grandes Potências europeias sobre a possibilidade de se apoderar da Líbia. Não houve oposição às ambições territoriais da Itália, mas a Alemanha, aliada da Itália na Tríplice Aliança, desejava uma aproximação ao Governo Otomano e a invasão da Líbia pela Itália poderia pôr em causa este objetivo. No entanto, a relação entre a Alemanha e o Império Otomano sofreu uma quebra quando, em 1908, se deu a Revolução dos Jovens Turcos. O novo Governo turco não desejava que os interesses italianos se expandissem mais na região e impediu os colonos italianos de adquirirem mais territórios na região.

No dia 23 de setembro de 1911, o Governo italiano enviou ao Governo otomano um protesto formal referindo perseguições aos italianos residentes na Líbia. Os Otomanos conheciam os objetivos italianos e ofereceram a possibilidade de abrir novas concessões económicas e a garantia de segurança dos cidadãos italianos residentes na Líbia. Contudo, paralelamente às diligências diplomáticas, o Governo otomano enviou recursos militares para a Líbia. A Itália não aceitou a resposta otomana e declarou guerra ao Império Otomano a 29 de setembro de 1911. Rapidamente as forças italianas desembarcaram na Líbia e ocuparam as cidades costeiras.

As poucas tropas otomanas existentes na Líbia não conseguiram impedir a invasão italiana do território e retiraram para o interior a partir de onde desenvolveram ações de resistência a uma maior penetração italiana. A situação alterou-se quando os Sanusis, uma tribo da Líbia e da região do Sudão, se juntou aos otomanos na luta contra os italianos. Depressa as tropas italianas ficaram confinadas a algumas posições costeiras onde dispunham do apoio de fogos dos navios de guerra italianos. Contudo, não conseguindo resolver a situação na Líbia e enfrentando problemas internos, o Governo italianos começou a agir contra outros territórios otomanos: Beirute, no atual Líbano, foi bombardeada em fevereiro de 1912; vários fortes que defendiam a entrada do Estreito de Dardanelos foram também bombardeados em maio desse ano; as ilhas atualmente conhecidas como Dodecaneso, no Mar Egeu, foram ocupadas por tropas italianas; os portos otomanos do Mar Vermelho foram bloqueados; uma flotilha de cinco torpedeiros italianos forçou a entrada no Estreito de Dardanelos, em julho de 1912. As ações militares poderiam ter sido prolongadas, mas o início da Primeira Guerra Balcânica no outono de 1912 levou o Império Otomano a aceitar que não tinha condições para continuar a defender os seus territórios africanos.

No dia 18 de outubro de 1912, no palácio de Ouchy, Lausanne, Suíça, foi assinado um tratado entre a Itália e o Império Otomano, com onze artigos dos quais interessa destacar – de forma resumida os três primeiros: o artigo 1 tratava da cessação imediata das hostilidades; o artigo 2 tratava da retirada das tropas e pessoal civil otomano da Líbia e retirada das tropas e pessoal civil italiano das ilhas Dodecaneso; o artigo 3 referia-se à troca de prisioneiros de guerra.

["Treaty of Peace Between Italy and Turkey." The American Journal of International Law 7, no. 1 (1913): 58-62.  https://www.jstor.org/stable/2212446?seq=1#metadata_info_tab_contents Visto em 2020 janeiro 20]

Quando as tropas turcas deixaram a Líbia, deixaram para trás não apenas as armas, mas também muitos homens e asseguraram aos Sanussi que, enquanto resistissem aos italianos, iriam continuar a receber apoio da Turquia. Os Italianos, por sua vez, não abandonaram as ilhas Dodecaneso. Como a guerra se prolongou pelos anos seguintes, os italianos empenharam tropas africanas da Eritreia, então uma colónia italiana. Apesar dos esforços feitos, só depois da Primeira Guerra Mundial a Itália conseguiu dominar a maior parte do território.

A Rússia mostrou simpatia pela ação italiana porque, tendo em vista a possibilidade de controlar os Estreitos, o enfraquecimento do Império Otomano contribuía para esse objetivo. A França manteve uma atitude reservada porque, embora emergindo reforçada da Segunda Crise de Marrocos, ainda não tinha estabelecido o protetorado sobre aquela região. O Reino Unido, signatário dos Acordos do Mediterrâneo (12 fevereiro 1887) segundo os quais aceitava que a Tripolitana pertencia à esfera de influência da Itália enquanto esta apoiaria os britânicos no Egito, não desejavam antagonizar a Itália, pelo que se mantiveram em silêncio sobre o assunto.

A Alemanha também não desejava antagonizar a Itália, sua parceira na Tríplice Aliança e com a contribuição de quem contava nos seus planos para um possível conflito na Europa. No entanto, os seus interesses no Império Otomano estavam em crescimento e estava em execução uma estratégia para exercer ali uma crescente influência económica e militar. Nesta situação, o conflito entre a Itália e o Império Otomano era encarado com apreensão. A Áustria-Hungria não desejava ver a Itália envolvida na questão dos Balcãs e quando as ilhas Dodecaneso foram ocupadas e a Itália ameaçou levar a guerra ainda mais longe, na Península Balcânica, o Chefe do Estado-Maior General austríaco, Conrad von Hötzendorf, chegou a propor uma guerra contra a Itália. No entanto, terá sido a possibilidade de uma intervenção militar da Itália nos Balcãs, quando se iniciava a Primeira Guerra Balcânica, que levou os Turcos à mesa de negociações [GERWARTH & MANELA, 2014, p. 38].


BIBLIOGRAFIA citada:

GERWARTH, Robert & MANELA, Erez (Editores), Empires at War 1911-1923, © 2014, Oxford University Press, New York, United States of America, ISBN 978-0-19-873493-2.