O incidente de Casablanca
A cidade marroquina de Casablanca estava ocupada por forças da Legião
Estrangeira Francesa. Esta força militar tinha sido criada por decreto de 9 de
Março de 1831, «Il sera formé une légion
compossé d’etrangers», quando era Ministro da Guerra de França (Secrétaire d’Etat au Département de la
Guerre) o Marechal Nicolas Jean-de-Dieu Soult (1769-1851), o mesmo que
comandou as tropas napoleónicas durante a Segunda Invasão Francesa de Portugal
(1809). A Legião Estrangeira foi então formada por todos os corpos de tropas
estrangeiras que serviam no Exército Francês. O 4º Batalhão da Legião
Estrangeira era formado por tropas portuguesas e espanholas.
A Legião Estrangeira Francesa sofreu muitas alterações ao longo dos anos
e das várias intervenções militares em que participou, em muitas partes do
mundo. Em Marrocos, a Legião esteve presente desde 1907 até 1956, quando Marrocos
readquiriu a sua independência. O primeiro corpo expedicionário da Legião
desembarcou em Casablanca, a 7 de Agosto. Pouco tempo depois chegaram novas
unidades daquele corpo de tropas. A sua missão era a de pacificar o território
marroquino onde as lutas pelo poder se tinham agravado com a resistência à
crescente presença francesa.
Na Legião Estrangeira, tal como na generalidade das forças militares,
foram registadas deserções. No dia 25 de
Setembro de 1908, seis desertores da Legião Estrangeira, três deles com a
nacionalidade alemã, tentaram embarcar num navio alemão utilizando salvo-condutos emitidos pelo Consulado Alemão. Os desertores foram reconhecidos por
funcionários franceses das instalações portuárias, tendo sido necessário
utilizar meios violentos para conseguir a sua prisão, apesar de estarem
acompanhados pelo Chanceler do Consulado.
Este acontecimento criou uma controvérsia entre a França e a Alemanha. Os
Franceses alegaram que a Alemanha só podia oferecer protecção em Marrocos a
pessoas de nacionalidade alemã. Com este argumento, os três desertores não
alemães ficavam excluídos da protecção alemã. No entanto, os Franceses também
alegaram que o território de Marrocos sob ocupação militar por parte da França
estava sujeito exclusivamente à jurisdição francesa e, por esta razão, os três
desertores alemães deviam prestar contas à Justiça francesa, não tendo a
Alemanha nenhuma autoridade para os proteger.
A Alemanha entendia, por seu lado, que os tratados em vigor lhe permitiam
exercer jurisdição extraterritorial em Marrocos e, sendo assim, os três
desertores alemães encontravam-se sujeitos exclusivamente à jurisdição do
Cônsul alemão em Casablanca. Também alegou que a prisão forçada e violenta dos
desertores punha em causa a inviolabilidade dos agentes consulares. Com estes
argumentos, a Alemanha exigia a libertação dos desertores de nacionalidade
alemã.
Pouco mais de um mês após estes acontecimentos, a França e a Alemanha
chegaram a um acordo e, a 10 de Novembro de 1908, os representantes de ambos os
governos assinaram um protocolo segundo o qual ambas as partes concordavam em sujeitar
esta questão a um processo de arbitragem, o que significava envolver uma
terceira parte na resolução do problema. Recorreram então ao processo de
arbitragem de acordo com o que se encontrava em vigor nas instâncias
internacionais então existentes, o Tribunal Permanente de Arbitragem.
A arbitragem é uma forma de resolução de conflitos que é praticada desde
a Antiguidade e foi utilizada com frequência na Idade Média, mas caiu em desuso
com o aparecimento dos Estados modernos e voltou a ser utilizada com mais
frequência no final do século XIX e início do século XX. Portugal recorreu
ao processo de arbitragem para a resolução das questões de Bolama (em 1870), na
actual Guiné-Bissau, e da Baía de Lourenço Marques, em Moçambique (1875). Em
ambos os casos os árbitros eram ou tinham sido chefes de Estado: o general
Ulysses S. Grant (1869-1877), presidente dos Estado Unidos da América, no caso
de Bolama, e o Marechal Patrice de Mac Mahon (1808-1893), presidente da
República Francesa, em 1875.
A Conferência de Paz que tinham decorrido em Haia, em 1899, permitiu a
criação do Tribunal Permanente de Arbitragem. Depois de escolhido o colectivo
de personalidades (árbitros) que iria analizar o problema, as reuniões
decorreram entre 1 e 19 de Maio de 1909 e a sua decisão foi conhecida a 22 de
Maio. Em termos gerais, a decisão do Tribunal de Arbitragem dava razão à França
e foi acatada pela Alemanha. Este acontecimento põe em evidência a
possibilidade de, naquela época, recorrer a instituições internacionais para
resolver este tipo de questões. Devemos ter em atenção, no entanto, que não se
tratava de uma questão de ocupação ou anexação de algum território ou, de forma
mais específica, não se tratava de atribuir território a uma dessas Potências
europeias sem que, de alguma forma, fossem atribuídas compensações às demais
Potências.
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