A rivalidade anglo-russa na Ásia Central
Entre 1223 e 1240, os principados russos não conseguiram
unir-se para combater os Mongóis que, sob a liderança de Genghis Khan (c.
1162-1227), avançaram da Ásia Oriental em direção à Europa. Durante cerca de
250 anos, os Russos sofreram o domínio mongol. Em todas as desvantagens desse
domínio destrutivo, merece especial realce o isolamento a que a Rússia foi
votada. Entretanto, o aumento da extensão do Império Mongol e a mudança de
carácter dos seus líderes ditaram a sua queda e, à medida que o domínio mongol
enfraquecia foram reatados os contactos com os reinos e impérios balcânicos.
Esta aproximação, contudo, foi anulada pela conquista de Constantinopla pelos
Turcos em 1453. De meados do século XIII a meados do século XV, Moscóvia (o
Principado com capital em Moscovo) cresceu e chamou a si a supremacia sobre os
restantes Estados eslavos da Rússia.
Ivan III (1440-1505), ou Ivan o Grande, governou de 1462 a
1505 e apoderou-se dos principados vizinhos mais fracos. Com o reinado do seu
neto Ivan, o Terrível (1533-1547 como príncipe de Moscóvia e 1547-1584 como
czar da Rússia), os canatos (principados) mongóis de Kazan e Astrakhan foram
dominados por Moscóvia. O domínio de Astrakhan conduziu à primeira guerra
russo-turca, em 1569-1570. A partir de 1580, o comércio de peles começou a
atrair os russos para a Sibéria e a expansão só terminou quando o Oceano Pacífico
foi atingido, em 1671. Em 1742, os russos atravessaram o Estreito de Bering e
iniciaram a exploração do Alasca. No seu apogeu o Império Russo incluía, além
do território russo atual, a Lituânia, a Letónia, a Estónia, a Finlândia, a
região do Cáucaso, a Ucrânia, a Bielorrússia, uma parte da Polónia, a Moldávia
(Bessarábia) e vastos territórios na Ásia Central. A Crimeia, onde se deram os
principais acontecimentos militares da guerra em 1853-1856 e hoje se encontra
sob controverso domínio russo, foi conquistada em 1783, poucos anos depois de
terem conseguido a sua independência do Império Otomano.
Neste processo de expansão, a Rússia conquistou posições na
Ásia Central. O seu objetivo é alvo de controvérsia. Pretendiam os russos
chegar à Índia ou obter uma saída para o Oceano Índico? O general Silvestre dos
Santos (ver bibliografia) cita Peter Hopkirk em The Great Game – The
struggle for empire in Central Asia: «O objetivo real da Rússia era, não a
Índia, mas Constantinopla: para manter a Grã-Bretanha sossegada na Europa,
devia mantê-la ocupada na Ásia.». O conjunto das ações desenvolvidas pela Rússia
e pelo Reino Unido na Ásia Central, no âmbito da expansão russa e da defesa da
Índia pelos Britânicos, ficaram conhecidas como o “Grande Jogo”, um termo
atribuído a Arthur Connolly (1807-1842), escritor, explorador e agente do
serviço de informações britânico, e que ele utilizou para descrever o conflito
entre Britânicos e Russos pela supremacia na Ásia Central ao longo do século
XIX. O historiador britânico Malcolm Edward Yapp (1931-) explica-nos o
significado daquela expressão:
«Tanto no uso popular como no uso
académico o termo tem dois significados. O primeiro, com um sentido mais
restrito, refere-se às alegadas atividades dos agentes secretos britânicos e
russos na Ásia Central, agentes enviados para colherem informações de valor
militar e político e talvez para lançar as fundações da influência política
sobre os povos da região. No seu segundo e mais alargado sentido refere-se á
rivalidade da Grã-Bretanha e da Rússia na Ásia Central e envolve a questão da
defesa da Índia Britânica contra uma possível invasão vinda de Noroeste. A
origem da utilização académica do termo numa Raleigh Lecture na British
Academy, a 10 de novembro de 1926, pelo professor H. W. C. Davis, intitulada The
Great game in Asia (1800-1844), que era uma descrição dos acontecimentos
que conduziram à primeira Primeira Guerra do Afeganistão e sobre a própria
guerra. […] Davis encontrou o termo “grande jogo” numa carta escrita no final
de julho de 1840 por um agente político britânico, Capitão Arthur Connolly, para
o Major Henry Rawlinson […] agente político em Qandahar […]: “You’ve a great
game, a noble game before you”.»
Podemos dizer que se gerou entre os Impérios Britânico e
Russo uma “guerra fria” em que os dois grandes antagonistas não chegaram a
confrontar-se no terreno, mas que procuraram utilizar outros atores para
servirem os seus interesses. Foi neste âmbito que se deu a Primeira Guerra do
Afeganistão (1839-1842), as guerras com o Império Sique (1845-1846 e
1848-1849), a Guerra Anglo-Persa (1856-1857) e a Segunda Guerra Anglo-Afegã
(1878-1880). A política britânica que conduziu a estas guerras foi amplamente
debatida no Reino Unido nos anos trinta do século XIX. Os Britânicos deviam
decidir se iriam manter as fronteiras então existentes ou avançar na Ásia
Central; se deviam formar estados tampão ou evitar qualquer acordo na região e
contar apenas com o poder britânico; se deviam fazer um esforço militar na Ásia
Central ou em alguma outra parte do mundo; se deviam opor-se à Rússia ou
procurar um acordo com ela.
Só três décadas mais tarde, quando a Rússia avançou no Turquestão, foi definita a estratégia utilizada até 1907: os Britânicos iriam obter posições avançadas, colocando na Ásia Central agentes britânicos e indianos com a missão de produzirem informações, esforçando-se por estabelecerem estados tampão na Pérsia e Afeganistão, sem excluir a possibilidade de acordos com a Rússia. Os Britânicos consideraram que, para atingirem a Índia, os Russos necessitavam de utilizar uma ou mais rotas que permitisse o avanço de forças com dimensão suficiente, que pudessem concentrar-se quando necessário e que permitissem estabelecer uma linha de comunicações eficaz para a sobrevivência dessas forças. Existiam duas rotas que permitiam que uma força russa de dimensão adequada atingisse a Índia:
- A primeira rota partia de Orenburg, na Ásia Central Russa, nas margens do rio Ural, passava por Khiva, no atual Uzbequistão, e chegaria a Khiva, no norte do Afeganistão, após uma viagem que, nas estradas acuais, totaliza quase cerca de 2.900 Km. A partir de Balkh, a força invasora deveria seguir a rota para Cabul, a quase 450 Km de distância, e daí para Jalalabad, já próximo da fronteira com a Índia. O Passo de Khyber seria a via pela qual atravessaria as montanhas na atual fronteira entre o Afeganistão e o Paquistão e chegaria rapidamente a Pexauar e ao Rio Indo.
- A segunda rota, mais para Ocidente, implicava a conquista de Herat no noroeste do Afeganistão. Daí seguiriam o percurso Kandahar e Quetta, mais a sul qua a primeira rota. A entrada no território do atual Paquistão seria feita pelo Desfiladeiro de Bolan.
Com ponto de partida em Orenburgo, a segunda rota é substancialmente mais curta, mas a primeira permitia melhor abastecimento de água e evitava confrontos com os Turcomenos que habitavam o atual Turquestão, o nordeste do Irão e noroeste do Afeganistão. Em qualquer dos casos seria necessário passar pelo Afeganistão e, por isso, os Britânicos desenvolveram o interesse em manterem o Afeganistão como um estado tampão, estratégia já iniciada na primeira metade do século XIX quando se deu a Primeira Guerra Anglo-Afegã, mas que não correu da melhor forma aos Britânicos. Aliás, a tradição da resistência afegã vinha de há muitos séculos: Alexandre, o Grande (356-323 a.C.) conquistou um império imenso que incluía o Império Persa, lançou incursões na Índia, mas, embora tenha atravessado o território, nunca conseguiu conquistar o Afeganistão (a Província Bactro-Sogdiana do Império Persa). Genghis Khan abandonou a empresa perante a resistência dos povos afegãos. Muito tempo depois, um oficial britânico afirmava que «se os afegãos, como nação, estiverem determinados a resistir aos invasores, as dificuldades tornar-se-iam intransponíveis» razão pela qual os Britânicos tinham todo o interesse em manter um Afeganistão unido, com capacidade de oferecer uma resistência apreciável aos invasores russos.
No Usbequistão, em 1865, os Russos anexaram formalmente
Tashkent, a atual capital daquele país; também anexaram Bukhara e Samarcanda,
na parte oriental, em 1868, e Khiva, em 1870, junto à fronteira com o
Turquemenistão. Tinham conseguido estabelecer uma base a partir da qual
poderiam ameaçar a independência da Pérsia e do Afeganistão e, portanto, a
Índia Britânica. Em 1878, a Rússia conseguiu colocar uma missão diplomática em
Cabul, o que foi recusado aos Britânicos. A grande influência que a Rússia
estava a ter no Afeganistão levou os Britânicos a agirem dando origem à Segunda
Guerra Anglo-Afegã (1878-1880). No final, os Britânicos conseguiram afastar a
influência russa e estabelecer um governo favorável e estável no Afeganistão.
A Rússia não deixou, no entanto, de avançar para sul. Em
1881, no Turquemenistão, conquistaram Geok-Tepe e, três anos depois, Merv. O
Turquemenistão passou a constituir a província Transcaspiana da Rússia.
Entretanto, os Russos tinham iniciado a construção de uma via férrea em direção
a Merv. Este facto causou grande preocupação aos britânicos porque esta infraestrutura
podia fazer chegar rapidamente tropas à fronteira com o Afeganistão. Nesta
altura estava já em funcionamento a Joint Anglo-Russian Boundary Commission
(Comissão conjunta anglo-russa para a fronteira afegã) que, com o trabalho
desenvolvido em 1884, 1885 e 1886 permitiu obter um acordo sobre as fronteiras
apesar dos numerosos incidentes verificados durante os trabalhos da comissão.
Neste processo os Afegãos nunca foram chamados a intervir.
Todos estes passos foram dados pelos Britânicos para
defenderem a Índia de uma provável invasão dos Russos. Mas «poucos de cada lado
acreditavam que uma invasão russa fosse provável e na realidade todas as provas
sobre a Rússia mostravam que não existia uma invasão planeada: ambos os lados
acreditavam que o principal perigo vinha da insatisfação interna na Índia
Britânica e que a abordagem da Rússia exacerbaria o perigo existente, forçaria
a Grã-Bretanha a manter uma guarnição maior e tornaria a Índia não rentável
para manter.» Todas as expedições em direção à fronteira da Índia teriam como objetivo,
não a invasão da Índia, mas servirem de catalisadores de insurreições, forçando
os Britânicos a aumentar os efetivos das suas guarnições, o que os obrigaria a
reduzirem as forças disponíveis para enfrentarem a Rússia no Médio Oriente ou
nos Balcãs.
No dia 10 de setembro de 1885 foi assinado em Londres o Delimitation
Protocol Between Great Britain and Russia (Protocolo de Delimitação Entre a
Grã-Bretanha e a Rússia) que definia a fronteira norte do Afeganistão. Até 1888
foram estabelecidos 19 protocolos adicionais a delimitarem certas zonas da
fronteira em mais detalhe. A Rússia foi obrigada a abandonar parte do
território conquistado no seu avanço para sul. A 12 de Novembro de 1893, foi
assinado em Cabul um Acordo entre o Reino Unido e o Afeganistão, que
reconfirmava o Acordo de 1873 e introduzia mais alguns dados relativos à
delimitação das fronteiras. Através de uma troca de notas, a 11 de março de
1895, a Rússia e a Grã-Bretanha estabeleceram um acordo em que definiam as
esferas de influência britânica e russa a leste do lago Sari-Qul (Zorkul), o
que envolvia também o Afeganistão, a Índia Britânica e a China. A 10 de
Setembro de 1895, a fronteira entre o Afeganistão e o Império Russo ficou
definida através de um novo conjunto de protocolos.
A rivalidade anglo-russa no Extremo Oriente
Na década de 1850, a expansão russa para o Oriente foi feita
ao longo do Amur, rio que hoje materializa parte da fronteira entre a Rússia e
a China. Em 1860, os Russos fundaram a cidade portuária de Vladivostok, na
costa do Mar do Japão, perto da atual fronteira com a China e com a Coreia do
Norte. A sua localização não favorecia os Russos por duas razões: porque, com uma
temperatura média anual de 4.9º C, o gelo de Inverno impedia a normal navegação
dos navios que utilizavam o porto e porque a saída para o Oceano Pacífico era
facilmente controlada pelo Japão.
A Rússia tinha a ambição de aceder aos recursos e mercados
do Extremo Oriente antes que as outras Grandes Potências o conseguissem e para
isso necessitava de um transporte mais rápido. O caminho de ferro construído
entre São Petersburgo e Vladivostok percorre cerca de 9.600 Km enquanto os
navios que liguem estas duas cidades terão de percorrer à volta de 25.000 Km se
transitarem pelo Canal de Suez ou 32.000 se seguirem a rota do Cabo. No início
do século XX, um comboio demoraria entre quinze a vinte dias a percorrer aquela
distância (hoje demora seis ou sete dias) enquanto um navio demoraria mais de
um mês pela rota mais curta.
Mapa do Extremo Oriente em 1900. Imagem original em https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/3/37/The_Americana_-_a_universal_reference_library%2C_comprising_the_arts_and_sciences%2C_literature%2C_history%2C_biography%2C_geography%2C_commerce%2C_etc._of_the_world_%281903%29_%2814763639145%29.jpg
As Grandes Potências europeias estavam já empenhadas em obter a sua parte do decadente Império Manchu. Os Alemães foram os primeiros a solicitar uma base naval e uma estação de carvão na costa norte da China para poderem abastecer e fazer a manutenção da sua frota do Extremo Oriente. A Rússia obteve em 1895 a permissão para se instalar em Poto Arthur. O Reino Unido tinha, ao entrar no século XX, o território de Hong-Kong, desde 1841, e as concessões de Xiamen, desde 1852, Tianjin, desde 1860, Hankou, Jiujing, Zhenjiung e Guangzhou, desde 1861, e o território arrendado em Weihaiwei, desde 1895 (ver o artigo «8 - A Guerra Russo-Japonesa». Na região, Bélgica, Itália, Portugal, França e Japão detinham igualmente, sob vários estatutos, territórios na China.
Em 1903-1904, o Reino Unido invadiu o Tibete. A questão que
aqui se colocava era em muitos aspetos idêntica à do Afeganistão, ou seja,
evitar que a Rússia exercesse aí a sua influência e conseguisse estabelecer uma
base para invasão da Índia. Perante tal possibilidade (remota), o Governo
britânico pretendeu transformar o Tibete em mais um estado tampão. O fracasso
das negociações com o governo do Tibete levou à invasão em 1903 pelas forças da
Índia Britânica. A retirada destas forças só foi realizada após a conclusão de
um acordo, em 1907, apesar de este território fazer parte do Império Chinês
desde o século XVII.
A principal oposição entre a Rússia e o Reino Unido no
Extremo Oriente resultava da diferente política económica e da forma como as
Potências entendiam que podiam explorar os recursos chineses. Enquanto a Rússia
pretendia apropriar-se de território onde tencionava manter o exclusivo das
suas atividades, o Reino Unido defendia uma política de Porta Aberta, defendendo
que deveriam existir as mesmas condições comerciais para as Grandes Potências
na China. Em 1904-1905, durante a Guerra Russo-Japonesa, o Reino Unido, aliado
do Japão, limitou a sua intervenção ao campo da diplomacia.
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