sexta-feira, 2 de maio de 2025

A Entente anglo-russa e a formação da Tríplice Entente

As convenções anglo-russas

Em 1907, a Rússia encontrava-se enfraquecida devido à instabilidade interna que se agravou com a Revolução de 1905 e pelo esforço canalizado para a guerra contra o Japão, que acabou por terminar com uma derrota humilhante frente àquele "pequeno país". O Governo britânico continuava a preocupar-se com o programa naval alemão. A lei de 19 de maio de 1906 tinha introduzido uma emenda à Lei Naval de 1900 e essa emenda previa a construção de um número de navios de guerra superior ao que tinha sido previsto no início do século. Os Britânicos lançaram o HMS Dreadnought, o navio mais avançado para a época, em 1906.

A rivalidade naval entre o Reino Unido e a Alemanha acentuou-se em 1906. A primeira Lei Naval alemã entrou em vigor em 1897 e definia um programa de expansão da marinha alemã, explicitando o número de navios de cada classe a serem construídos até 1904 e o teto dos custos autorizados para esse programa. A Segunda Lei Naval, de 1900, estabeleceu objetivos de construção naval mais ambiciosos, aproximadamente o dobro do previsto na lei anterior. Em 1906, uma Terceira Lei Naval introduziu uma emenda à anterior, acrescentando ao efetivo planeado para a marinha de guerra alemã seis grandes cruzadores e quarenta e oito torpedeiros. Esta "corrida aos armamentos" por parte da Alemanha tinha a sua contraparte nos programas navais britânicos.

«A supremacia marítima da Alemanha deve ser reconhecida como incompatível com a existência do Império Britânico, e mesmo na eventualidade de esse Império desaparecer, a união do maior poder militar com o maior poder naval num Estado deve levar o mundo a unir-se pela libertação de tal pesadelo.» A geografia da Grã-Bretanha e a dispersão do seu Império davam um relevo especial à Royal Navy. A defesa do território britânico e do seu Império exigia uma marinha com capacidade de enfrentar as ameaças prováveis. Foi nesse sentido que, em 1889, o Parlamento britânico aprovou uma lei, a Naval Defense Act (31 de maio), que adotou o critério Two Power Standard para definir a dimensão da Royal Navy. Este conceito significava que a Royal Navy devia ser tão forte como as duas outras armadas mais fortes quando combinadas. Em 1889, essas duas armadas eram as da França e da Rússia.

O quadro seguinte [Kennedy, 1989, p. 203] mostra a tonelagem em navios de guerra das Grandes Potências, entre 1880 e 1914:

 

1880

1890

1900

1910

1914

Reino Unido

650.000

679.000

1.065.000

2.174.000

2.714.000

França

271.000

319.000

499.000

725.000

900.000

Rússia

200.000

180.000

383.000

401.000

679.000

EUA

169.000

240.000

333.000

824.000

985.000

Itália

100.000

242.000

245.000

327.000

498.000

Alemanha

88.000

190.000

285.000

964.000

1.305.000

Áustria-Hungria

60.000

66.000

87.000

210.000

372.000

Japão

15.000

41.000

187.000

496.000

700.000


A Análise dos valores apresentados mostra-nos:

  • O extraordinário aumento da tonelagem disponível para o Reino Unido, a partir de 1890 (um ano após a aprovação do Naval Defense Act) e para a Alemanha, a partir de 1900 (a primeira Lei Naval alemã entrou em vigor em 1897);
  • A fraqueza do programa russo, mesmo quando se consideram as consequências da Guerra Russo-Japonesa de 1904-1905;
  • A crescente potência naval dos EUA;
  • A manutenção do critério Two Power Standard pelo Reino Unido: França+Rússia em 1880; França+Itália em 1890; novamente França+Rússia em 1900; Alemanha+França em 1910, mas já com a Entente Cordiale e as conversações entre os estados maiores da França e Reino Unido a decorrerem.

Na segunda Conferência de Haia (15 de junho a 18 de outubro de 1907) a Alemanha continuou a opor-se a um acordo para o desarmamento. O Almirante Alfred Peter Friedrich von Tirpitz (1848-1930), Chfe do Estado-Maior Naval de 1892 e Secretário de Estado da Marinha a partir de Junho de 1897, defendia que a Alemanha devia possuir uma verdadeira frota de alto mar em vez de se limitar a ter uma força de defesa costeira. Foi neste sentido que surgiram as Leis Navais alemãs (1898, 1900, 1906). O conceito de Tirpitz não era o de construir uma frota superior à do Reino Unido. Esse seria um objectivo inatingível. O conceito se Tirpitz assentava o conceito conhecido como "teoria do risco" segundo o qual «a frota alemã deveria ser suficientemente poderosa para infligir danos graves à frota da Potência naval mais forte. A Potência naval mais forte não se aventuraria a atacar a poderosa frota alemã, uma vez que a sua própria frota ficaria tão enfraquecida no processo de destruir a marinha alemã que ficaria à mercê de outras Potências navais.»

Quando Tirpitz enunciou a sua "teoria do risco", no final do século XIX, O Reino Unido estava de más relações com a França e a Rússia, principalmente por causa da expansão imperial em África e na Ásia Central. A França e a Rússia eram aliadas desde 1892 e o Reino Unido não podia deixar de cumprir o rácio estabelecido pelo Two-Power Standard para poder enfrentar uma combinação do poder naval daquelas duas Potências ou de uma delas - a Rússia, certamente - com a Alemanha. Se o Reino Unido estabelecesse um acordo com a França e a Rússia, não haveria razão para supor que aquelas Potências aproveitariam a fraqueza temporária da Royal Navy, após uma guerra naval com a Alemanha, para destruir a posição do Reino Unido no mundo. Se o Reino Unido estabelecesse acordos com a França e a Rússia, não teria necessidade de manter as mais fortes unidades da sua frota longe do Mar do Norte.

Em 1904, o Reino Unido e a França estabeleceram um acordo que ficou conhecido como Entente Cordiale. Este acordo foi posto à prova no decorrer da Crise de Marrocos de 1905-1906 e saiu reforçado dessa crise. Enquanto se davam estes acontecimentos, a Rússia viu-se envolvida numa guerra contra o Japão, de que saiu derrotada, e a braços com a Revolução de 1905 (Ver o artigo "08 A Guerra Russo-Japonesa"). Esta Revolução permitiu que a política externa da Rússia fosse dirigida por Alexander Petrovich Izvolsky (1856-1919), um monárquico constitucional que pretendia estabelecer um longo período de paz para a Rússia, para permitir o seu desenvolvimento interno. Do lado britânico, Edward Grey (1862-1933), do Liberal Party, tinha assumido a pasta de Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros a 10 de dezembro de 1905. Ambos os lados desejavam a resolução dos problemas coloniais entre as duas Potências. Os novos ministros russos estavam conscientes da necessidade de paz. Pouco antes de se tornar primeiro-ministro do Governo russo, Pyotr Arkadyevich Stolypin (1862-1911) afirmava: «a nossa situação interna não nos permite conduzir uma política externa agressiva.». Um entendimento com o Reino Unido não estaria, assim, fora de questão.

A aproximação anglo-russa parecia aos conservadores russos, tal como aconteceu com as conversações que conduziram à aliança franco-russa, uma aproximação contra-natura. Na Rússia, com um regime ainda de natureza autocrática, apesar da entrada em funcionamento de um parlamento (Duma), o Czar e os seus conselheiros conservadores encontravam grandes afinidades com o regime da Alemanha de Guilherme II, o que não acontecia relativamente à democracia liberal britânica. Contudo, os respectivos ministros dos Negócios Estrangeiros, assim como o rei Eduardo VII, desenvolveram os seus esforços no sentido de se chegar a um acordo. As questões fundamentais a resolver para que a aproximação fosse permitida prendiam-se com a expansão russa na Ásia Central e a defesa da Índia Britânica.

As negociações entre os representantes do Reino Unido e da Rússia começaram na primavera de 1906. Avançaram lentamente e houve sempre o risco de colapsarem. «O ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Izvolsky, queria um acordo que lhe desse mãos livres nos Balcãs, mas os seus movimentos foram repetidamente restringidos pelos seus conselheiros militares e pelos seus próprios receios de antagonizar a Alemanha […] O Estado-Maior general ameaçou impedir a política de Izvolsky.» Para exercer pressão sobre o Governo russo, Sir Edward Grey colocou em cima da mesa a possibilidade de os Britânicos virem a admitir alterações às normas reguladoras do tráfego marítimo nos Estreitos, no caso de as conversações chegarem a bom termo. Por fim, foi possível chegar à assinatura de um acordo – Entente – formalizado com a sua assinatura, em São Petersburgo, a 31 de agosto de 1907. Assinaram o acordo, o embaixador britânico na Rússia, Sir Arthur Nicholson (1849-1928), e o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Alexandre P. Izvolsky.

Este acordo era constituído por três convenções relativas à Pérsia, ao Afeganistão e ao Tibete, cada uma delas com cinco artigos.


Convenção relativa à Pérsia

No artigo I, o Reino Unido comprometia-se a não interferir ou apoiar quaisquer intervenções, britânicas ou de terceira Potência, na zona norte da Pérsia, sendo definidos os limites. No artigo II, a Rússia tomava idêntica atitude relativamente à zona Sudeste da Pérsia. Pelo artigo III, a Rússia comprometia-se a não se opor, sem um acordo prévio com o Reino Unido, a quaisquer concessões aos súbditos britânicos na região central da Pérsia. O Reino Unido adoptava uma atitude idêntica relativamente à Rússia. Todas as concessões já existentes nas regiões indicadas nos artigos I e II (a Norte e a Sudeste) deveriam ser mantidas. Os artigos IV e V tratavam das questões relativas às dívidas da Pérsia.



A Pérsia ficava assim dividida em três regiões (ver mapa), ficando as intervenções estrangeiras nas regiões norte e sudeste da Pérsia ficar sujeitas ao acordo da Rússia e do Reino Unido respectivamente. Houve o cuidado de não referir estas zonas como “esferas de influência” embora se tratasse de territórios sobre os quais as duas Potências, Rússia e Reino Unido, gozavam de um estatuto preferencial e exerciam influência e controlo. Este cuidado foi tido na redacção do texto para que não ficasse explícita a divisão da Pérsia entre as duas Potências. O acordo relativo a esta Convenção foi atingido sem a participação do Governo da Pérsia. De igual forma, a assinatura da Convenção foi realizada sem a participação ou o conhecimento prévio daquele Governo.


Convenção relativa ao Afeganistão

No artigo I, o Governo do Reino Unido declarava não ter a intenção de alterar o estatuto político do Afeganistão e que exerceria a sua influência apenas no sentido pacífico e não encorajaria aquele país a tomar medidas que pudessem constituir uma ameaça para a Rússia. O Governo russo, por seu lado, declarava que reconhecia o Afeganistão como estando fora da sua esfera de influência e aceitava que as relações diplomáticas com o Afeganistão fossem desenvolvidas por intermédio do Reino Unido. Comprometia-se também a não enviar agentes para Afeganistão. No artigo II, o Reino Unido comprometia-se a não anexar ou ocupar qualquer parte do Afeganistão nem a interferir na administração do país. O artigo III tratava dos contactos entre as autoridades russas e afegãs para resolução das questões fronteiriças. O artigo IV reconhecia o princípio da igualdade de tratamento nas questões comerciais entre o Afeganistão e a Rússia e Reino Unido. O artigo V tratava da entrada em vigor desta Convenção. Nestes termos, a Rússia reconhecia o Afeganistão como sendo quase um protectorado britânico.

 

Convenção relativa ao Tibete

Pelo artigo I, a Rússia e o Reino Unido comprometiam-se a respeitar a integridade territorial do Tibete e a não interferirem na sua administração interna. O artigo II admitia o princípio da suserania da China sobre o Tibete. Pelos artigos III e IV, a Rússia e o Reino Unido comprometiam-se a não enviar representantes para Lhassa e ambos se comprometiam a não obter quaisquer concessões de caminhos de ferro, estradas, telégrafos, minas ou outros direitos no Tibete. O artigo V estabelecia que nenhuma parte dos rendimentos do Tibete podiam ser atribuídos à Rússia ou ao Reino Unido ou aos seus súbditos. Esta Convenção incluía um anexo que tratava da retirada das forças britânicas após o pagamento de uma indemnização de 25.000 rupias.

Texto em língua inglesa da Convenção anglo-russa relativa à Pérsia, Afeganistão e Tibete em https://en.wikisource.org/wiki/Anglo-Russian_Convention

 

A Tríplice Entente

O acordo anglo-russo assinado em 1907 permitiu erguer uma barreira de regiões tampão relativamente aos eixos de aproximação para a Índia (Pérsia, Afeganistão e Tibete). O acordo foi o instrumento que permitiu a criação da “Tríplice Entente”. Este agrupamento formado pela França, Reino Unido e Rússia não era um bloco sólido com compromissos claramente definidos num tratado tal como a Tríplice Aliança. Em vez disso, consistia em três instrumentos bilaterais separados e distintos: uma aliança entre a França e a Rússia e dois acordos que tratavam exclusivamente de assuntos extra-europeus.

O acordo anglo-francês de 1904 - a Entente Cordiale – não era dirigido contra a Alemanha; destinava-se a liquidar os diferendos entre a França e o Reino Unido no âmbito da sua expansão colonial. No entanto, as posições assumidas pela Alemanha durante a Primeira Crise de Marrocos (1905-1906) e a rivalidade naval anglo-alemã provocaram uma correcção das intenções da Entente Cordiale tendo como consequência a intensificação das relações militares anglo-francesas que se materializaram no trabalho conjunto dos respectivos estados-maiores com a finalidade de planearem o envio de uma força expedicionária britânica para o Continente em caso de conflito. Convém lembrar, no entanto, que a Alemanha detinha interesses em Marrocos.


Na Ásia Central não existiam interesses alemães e os textos das Convenções anglo-russas não continham nada que pudesse ser interpretado como dirigido contra a Alemanha. Contudo, a Europa estava a ficar dividida em dois campos rivais e o acordo anglo-russo permitiu aos alemães criarem a ideia de cerco (
Einkreisung). Esta ideia não estava presente nos objectivos expressos na aliança e nos acordos que formavam a Tríplice Entente, mas ela não deixava de se materializar segundo a perspectiva alemã. Ainda antes do início das negociações, Sir Edward Grey escreveu sobre a utilidade dos acordos do Reino Unido com a França e com a Rússia: «Se for necessário para reprimir a Alemanha, isso poderia então ser feito.»

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