A Europa no início do século XX
No início do século XX, as Grandes Potências Europeias
alinhavam-se em dois sistemas de alianças e acordos. De um lado a Tríplice
Aliança, formada em 1882, pela Alemanha, Áustria-Hungria e Itália; do outro
lado, a Aliança Franco-Russa, estabelecida em 1892. O Reino Unido quebrou a sua
política de “esplêndido isolamento” ao realizar uma aliança com o Japão, em
1902, enquanto na Europa, a aproximação à França não foi além de um acordo, a “Entente
Cordiale”, direcionado para a resolução de conflitos coloniais. A entente entre
o Reino Unido e a França foi posta à prova durante a Primeira Crise de Marrocos
(1905-1906), tornando-se mais sólida e dando origem a conversações entre os
Estados-Maiores britânico e francês tendo em vista a eventualidade de uma
guerra na Europa. Mesmo neste último caso, não existiu mais do que um acordo
que a nada obrigava o Reino Unido. A Rússia, abalada pela derrota sofrida na
Guerra Russo-Japonesa (1904-1905) e a braços com a Revolução de 1905, procurava
criar condições para uma recuperação económica e militar. Assim, a França
mantinha uma “ligação forte” com a Rússia, sob a forma de aliança defensiva, e
uma “ligação fraca” com o Reino Unido, sob a forma de “entente”.
O grande desenvolvimento industrial que então se verificava
facilitou o estabelecimento das Potências europeias em quase toda a África e
muitas regiões da Ásia. Tanto no Médio Oriente como no Extremo Oriente, as
Potências europeias encontraram um campo propício aos seus investimentos,
normalmente sustentados pela força militar. Entretanto, dois Estados não
europeus, os Estados Unidos da América e o Japão, ganhavam relevo entre as
Grandes Potências do mundo, com destaque para os EUA. As principais Grandes Potências
eram ainda europeias, mas as relações internacionais, isto é, as interações
entre Estados - entidades inteiramente soberanas – ganharam uma dimensão
verdadeiramente mundial. Esta nova amplitude das relações internacionais, que
já vinha a ganhar forma ao longo do século XIX, exigia mais e melhores
comunicações o que correspondeu ao aumento significativo da quantidade e da
qualidade dos meios de comunicação e de transporte, recursos materiais e infraestruturas
que exigiam avultados recursos financeiros que o Governo russo obtinha nos
mercados internacionais, especialmente em França.
Após a Guerra Franco-Prussiana (1870-1871), Bismarck
construiu um sistema de alianças que permitiu manter a paz na Europa, favorável
à sua política de desenvolvimento do recém-formado Império Alemão. Esta
afirmação é verdadeira ao excluirmos os conflitos nos Balcãs, o que inclui a
Guerra Russo-Turca de 1877-1878. A subida ao trono alemão de Guilherme II, em
1888, a saída de cena de Bismarck em 1890 e a sua substituição por governantes
de qualidade muito inferior à daquele estadista, conduziram a transformações
importantes na política alemã que, em termos de Negócios Estrangeiros,
enveredou abertamente pela Weltpolitik (Política Mundial), que procurou
aumentar a influência da Alemanha no cenário internacional e teve como
consequência a criação de novos focos de tensão que, na Europa, tiveram o seu
ponto alto nas crises de Marrocos (1905-1906 e 1911) ou a Anexação da Bósnia
pela Áustria-Hungria em 1908.
A rivalidade anglo-russa
No quadro que acabámos de descrever, entre o Reino Unido e a
Rússia existiam zonas de atrito: o Médio Oriente, por causa da Turquia e do
controlo dos Estreitos do Bósforo e Dardanelos; a Ásia Central, porque os Britânicos
viam na expansão russa uma ameaça à Índia; o Extremo Oriente, porque o Império
Chinês era, embora de forma diferente, objeto de cobiça para ambas as
Potências.
A rivalidade anglo-russa no Médio Oriente
O objetivo russo no Médio Oriente era materializado por
Constantinopla. Dominar a capital do Império Otomano significava dominar os
Estreitos do Bósforo e de Dardanelos, ou seja, dominar a passagem entre o Mar
Negro e o Mar Mediterrâneo e, desde novembro de 1869, ter acesso fácil ao Canal
de Suez. Este é um objetivo que os Russos perseguem, pelo menos, desde finais
do século XVII. Com a Guerra Russo-Turca de 1768-1774, os Russos conquistaram o
sul do Mar Negro e, em 1783, anexaram a Crimeia que, nove anos antes, com a
ajuda dos Russos, tinha ganho a sua independência do Império Otomano. Estes
factos aconteceram durante o reinado de Catarina a Grande (1729-1796). Nesse
mesmo ano começou a ser construída a base naval de Sebastopol onde os Russos
sediaram a sua frota do Mar Negro. Os navios de guerra russos estavam agora a
dois dias de Constantinopla.
O bom relacionamento entre a Rússia e o Reino Unido
manteve-se até 1853, apesar dos avanços russos em direção ao Afeganistão e à
Índia causarem receio aos Britânicos. Estes preocupavam-se particularmente com
a nova linha férrea russa, então parcialmente construída, que se estendia até
às fronteiras do Afeganistão e da Pérsia e que, quando concluídas, tornariam possível
a Rússia transportar rapidamente as suas forças para aquelas regiões, o que
exigiria esforços redobrados aos Britânicos. Em 1827, uma esquadra russa
participou com as esquadras francesa e britânica na Batalha de Navarino (20 de outubro)
durante a Guerra da Independência da Grécia (1821-1829).
Quando, em 1844, o czar Nicolau I (1796-1855) visitou a
rainha Vitória em Londres, houve conversações entre as duas Potências das quais
resultou um acordo para ambas cooperarem perante o colapso do Império Otomano,
que parecia iminente, ou no caso de este ser atacado por qualquer outra
Potência. Entretanto ambas as Potências concordaram em tentar manter o Império
Otomano e ambas concordaram em discutirem um acordo sobre as ações a tomar no
caso de se tornar claro que não seria possível garantir a sua existência. Este
foi um acordo puramente verbal e muito vago no que respeita às ações a tomar e
ao seu timing.
A visita de Nicolau I à Grã-Bretanha ocorreu entre 31 de maio
e 9 de junho. Em setembro, Karl Nesselrode (1780-1872), o ministro dos Negócios
Estrangeiros russo foi a Londres e apresentou um memorando que continha os
termos do acordo verbal entre os dois governos, mas, para os Britânicos, o
acordo obtido em junho não era mais que «a series of polite generalities
rather than a basis for action.» George Hamilton-Gordon, 4º conde de
Aberdeen (1784-1860), Secretary of State for Foreign Affairs, limitou-se
a declarar que esperava que as ideias contidas no memorando continuassem
presentes em futuras negociações sobre o Médio Oriente. Desta forma, a ligação
ao que fora acordado com Nicolau I apenas comprometia o Governo de Sir Robert
Peel (1788-1850). Os sucessores de Peel entenderam não estarem comprometidos
com esse acordo.
Importância do Mediterrâneo Oriental e do Canal do Suez para a “Rota da Índia” (britânica). Imagem original em https://marsemfim.com.br/wp-content/uploads/2017/04/mapa-2.jpg.webp.
Este despacho de Nicolau I mostra as verdadeiras intenções
da Rússia, que pouco tinham a ver com os Lugares Santos, os monges ou os
peregrinos. É certo que o Governo russo era pressionado para tratar essa
questão, mas esta não podia justificar uma invasão da Turquia. O controlo dos
Estreitos e o acesso da marinha de guerra russa ao Mediterrâneo eram a causa
real desta atitude. Perante a ameaça à integridade do Império Otomano, a França
e o Reino Unido apoiaram o Sultão que rejeitou as propostas russas. Os Russos
avançaram com as suas tropas para a Moldávia e Valáquia (atual Roménia), então
sob suserania turca. A 23 de Outubro de 1853, a Turquia declarou guerra à
Rússia.
Uma esquadra turca foi destruída em Sinope, a 30 de novembro,
pela frota russa do Mar Negro. A 3 de Janeiro de 1854, com autorização dos
Turcos, as esquadras francesa e britânica atravessaram os estreitos e entraram
no Mar Negro. Foram desencadeadas ações diplomáticas para obrigar os Russos
abandonarem os territórios conquistados, mas sem resultado. A 10 de abril, a
França e o Reino Unido assinaram um tratado de aliança a que aderiu também a
Turquia e, no dia seguinte, a Rússia declarou guerra à França e ao Reino Unido.
Tinha início a Guerra da Crimeia que opôs a França, o Reino Unido e a Turquia
contra a Rússia. A partir de janeiro de 1855, ao Reino da Sardenha entrou na
guerra ao lado das Potências aliadas.
A Guerra da Crimeia terminou com a derrota da Rússia que foi
obrigada a aceitar os termos do armistício assinado em Paris a 28 de fevereiro
de 1856 e do Tratado de Paris de 30 de março desse ano. Este tratado era
composto por trinta e cinco artigos, uma Convenção relativa aos Estreitos do
Bósforo e de Dardanelos e uma Convenção relativa «ao número e à força dos
navios de guerra que as Potências costeiras manterão no Mar Negro». O artigo 10.º
do Tratado de Paris referia que as normas estabelecidas no Tratado de Londres
de 13 de Julho de 1841 – sobre o encerramento dos Estreitos – eram revistas por
comum acordo das Potências signatárias (do Tratado de Paris de 1856) e remetia
o texto com as alterações adotadas para uma Convenção em anexo, a Convention
des Dètroits cujo artigo 1.º estipulava o seguinte:
«ARTICLE PREMIER. – Sa Majesté
le Sultan, d’une part, declare qu’il a la ferme résolution de maintenir, à
l’avenir, le principe invariablement établi comme règle de son Empire, et en
vertu duquel il a été de tout temps défendu aux bâtiments de guerre des Puissances
étrangères d’entrer dans les détrits des Dardanelles et du Bosphore, et que,
tant que la Porte se trouve en paix, Sa Majesté n’admettra aucun bâtiment de
guerre étranger dans les dits détroits.
Et Leur Majestés l’Empereur
des Français, l’Empereur d’Autriche, la Reine du Royaume-Uni, de la
Grande-Bretagne et d’Irlande, le Roi de Prusse, l’Empereur de toutes les
Roussies et le Roi de Sardaigne, de l’autre part, s’engagent à respecter cette
détermination du Sultan et à se conformer au principe ci-dessus énoncé.»
Para além das restrições ao trânsito de navios de guerra nos
Estreitos, o Tratado de Paris estipulava no seu artigo 11º que o Mar Negro
ficaria “neutralizado”, ou seja, eram impostas limitações severas à existência
de meios navais de guerra naquele mar. A Convenção relativa ao Mar Negro, em
anexo ao Tratado, definia os termos dessas restrições:
«ARTICLE PREMMIER. – Les
Hautes Parties contractantes s’engagent mutuellment à n’avoir dans la mer Noire
d’autres bâtiments de guerre que ceux dont le nombre, la force et les
dimensions sont stipulés ci-après.
Art. 2. – Les Hautes Parties
contractantes se réservent d’entretenir chacune, dans cette mer, six bâtiments
à vapeur de cinquante mètres de longueur à la flottaison, d’un tonnage de huit
cents tonneaux au maximum, et quatre bâtiments légers à vapeur ou à voile, dúne
tonnage qui ne dépassera pas deux cents tonneaux chacun.»
A Rússia perdia desta forma a possibilidade de manter uma
frota de guerra no Mar Negro. O objetivo do Reino Unido, o de impedir o acesso
da marinha de guerra russa ao Mediterrâneo, ficava então reforçado porque o
Tratado de 1856 acrescentava a neutralização do Mar Negro às restrições já
existentes no Tratado de Londres de 1841. Após a abertura do Canal de Suez, em novembro
de 1869, estas disposições tiveram especial importância relativamente à proteção
da rota da Índia já que a utilização daquela obra permitia à marinha britânica
economizar 8.200 Km na viagem entre a Grã-Bretanha e a Índia. Já a frota russa
do Báltico teria de atravessar os estreitos entre a Dinamarca e a Península da
Escandinávia e de enfrentar a Royal Navy no Mar do Norte para chegar a
outras regiões do Globo.
Após a Guerra da Crimeia, a Grã-Bretanha e a Rússia
encontravam-se nitidamente em campos opostos no que respeita às questões do
Médio Oriente que, na época, estava dominado pelo Império Otomano. Os Estreitos
e, portanto, Constantinopla, continuavam na mira dos russos. «A fixação com a
capital otomana foi […] uma constante no Império Russo, que a denominava de
Tsargrado, a “cidade de César”, tanto por seu simbolismo como por sua
importância em relação aos estreitos».
O Tratado de Paris viria a ser denunciado pela Rússia em
1871. Com a atenção europeia concentrada na Guerra Franco-Prussiana
(1870-1871), o chanceler russo Alexander Gorchakov (1798-1893), com o apoio de
Bismarck, denunciou as disposições do Tratado de Paris que os Russos
consideravam vexatórias por não lhes permitirem dispor de uma frota de guerra
ou fortificações costeiras no Mar Negro. Os Britânicos protestaram e foi
realizada uma conferência internacional em Londres, em março de 1871, para
tratar este tema. Os Russos conseguiram manter a sua posição. Ficava revogado o
princípio da neutralidade do Mar Negro.
No conflito entre a Rússia e a Turquia, em 1877-1878, o
Reino Unido voltou a tomar posição em defesa da integridade da Turquia.
Assinado o Tratado de San Stefano (1878), foram a Áustria-Hungria e a
Grã-Bretanha que forçaram a Rússia a recuar e a participar no Congresso de
Berlim que alterou muitas das disposições de San Stefano. Esta derrota
diplomática da Rússia levou a opinião pública russa a reagir contra a
Áustria-Hungria, Alemanha e Reino Unido. As relações entre o Reino Unido e a
Turquia, no entanto, degradaram-se porque a Turquia não avançou com as reformas
necessárias e acordadas com as Grandes Potências europeias. Entretanto, o líder
do Partido Liberal, William Ewart Gladstone (1809-1898), que sucedeu ao
Conservador Benjamim Disraeli (1804-1881) em 1880, aceitou a necessidade de
manter o Império Otomano, mas apenas porque o seu colapso envolvia uma grande
ameaça para a paz na Europa e porque se opunha a que a Rússia dominasse
Constantinopla.
No dia 11 de julho de 1878, dois dias antes de terminar o
Congresso de Berlim, o Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, Robert
Gascoyne-Cecil, 3º marquês de Salisbury (1830-1903), tinha declarado que as
obrigações do Reino Unido relativamente ao fecho dos Estreitos estavam
limitadas a um acordo para respeitar a independência das decisões do Sultão
sobre o assunto, embora essas decisões se devessem conformar com o espírito dos
tratados em vigor. Isto significava que o Sultão podia autorizar uma frota
britânica a passar através dos Estreitos para entrarem no Mar Negro. O
representante russo, Pavel Andreyevich Shuvalov (1830-1908), fez saber que era
entendimento do Governo russo que as obrigações resultantes da aplicação dos
trados aplicavam-se a todas as Potências europeias, umas em relação às outras e
não meramente ao Sultão. A declaração britânica não teve outro efeito imediato
para além de acentuar o sentimento antibritânico na Rússia.
O ambiente de desconfiança entre os governos turco e
britânico acentuou-se e a influência britânica no Império Otomano entrou
inevitavelmente em declínio relativamente a outras Potências europeias. O
Governo turco voltou-se abertamente para a Alemanha e para a Áustria-Hungria,
com quem tentou uma aliança. A ideia foi afastada por ambas as Potências para
não hostilizarem a Rússia, um dos elementos da, ainda existente, Liga dos Três
Imperadores. No entanto, foram firmados alguns acordos e, em 1882, alguns oficiais
alemães, sob a direção do general Colmar von der Goltz (1843-1916), seguiram
para Constantinopla com a missão de treinarem e desenvolverem o exército turco.
Ao contrário dos Britânicos, os Alemães não mostraram interesse nas reformas
políticas do Império Otomano.
«A entrada da Rússia na Liga dos Três Imperadores foi em
grande parte o produto do seu receio e antipatia pela Grã-Bretanha.» Foi neste
cenário que os Russos, tendo presente a declaração de Salisbury a 11 de novembro
de 1878, procuraram estabelecer um acordo com a Turquia para a defesa dos
Estreitos. O acordo não foi realizado, mas nos anos seguintes as relações
turco-russas melhoraram significativamente. O mesmo não aconteceu com as
relações anglo-russas na região e o Império Russo continuou a sua expansão
gradual na Ásia.
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