quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

A Primeira Crise de Marrocos (1905)


«Marrocos será para nós um objecto de compensação. Quantos mais interesses ali criarmos, mais essa compensação será necessária.» Com estas palavras, Bismarck punha em evidência uma das razões que o levaram a alterar a sua atitude relativamente a uma política colonial. A Alemanha, tal como outras Potências europeias, desenvolveu actividades económicas em Marrocos, mas sem que tenham atingido uma grande relevância. A partir de 1904, com a criação da Entente Cordiale, a questão de Marrocos tornou-se para os Alemães numa questão essencialmente política. Desde a sua unificação (1871), a Alemanha tornara-se uma Potência incontornável nas questões europeias e não estava disposta a abdicar desse estatuto.

Após a saída de Bismarck (1890), com a política mundial (Weltpolitik) adoptada por Guilherme II e seus governos, a Alemanha tinha necessidade de se afirmar nas questões internacionais – não apenas europeias - especialmente aquelas em que outras Potências europeias se encontravam envolvidas. A França e outras Potências não podiam tomar decisões sobre Marrocos sem consultarem a Alemanha. Esta posição era consensual na Alemanha, mas o mesmo não se passava quanto à perspectiva das consequências dessa tomada de posição. A questão marroquina tinha, por esta razão, um alcance que ia muito além do território de Marrocos e havia o perigo de, a partir daí, surgir um conflito franco-alemão, ou seja, uma guerra europeia que certamente escaparia aos limites europeus, alastrando por todos os continentes onde as Potências europeias defendiam os seus interesses. Isto podia suceder apesar de o chanceler alemão, Bernhard Heinrich Martin Karl von Bülow (1849-1929), chanceler entre 1900 e 1909, anunciar que do ponto de vista da Alemanha não era desejável que a França e o Reino Unido mantivessem boas relações a fim de preservar a paz no mundo, o que a Alemanha sinceramente desejava.

Mapa de Marrocos, em http://www.africa-turismo.com/marrocos/mapa.htm

Para o Governo alemão, era necessário provocar o afastamento do ministro francês dos Negócios Estrangeiros, Délcassé, por duas razões. Em primeiro lugar porque ele, hostil em relação à Alemanha e partidário de uma ligação mais íntima com o Reino Unido, teve um papel fundamental na construção da Entente Cordiale, ou seja, concluiu um acordo sobre Marrocos sem que a Alemanha tivesse sido consultada. De igual forma, conseguiu os acordos com a Itália [Ver o texto «06 - A Aliança Franco-Russa e a Aproximação Franco-Italiana»] e com a Espanha que, a 6 de Outubro de 1904, tinha estabelecido um acordo secreto com a França. A troco de apoio na política marroquina, a Espanha beneficiaria de concessões territoriais no Norte e no Sul de Marrocos. Em segundo lugar, porque existia a possibilidade de a França desempenhar um papel importante na mediação do conflito entre a Rússia e o Japão. «Se a mediação fosse bem-sucedida, a França desempenharia um papel de primeiro plano na política mundial e poderia até colocar-se à cabeça de uma “Quádrupla Aliança” composta pela França, Reino Unido, Rússia e Japão.»

Com estas perspectivas, a diplomacia alemã agiu com o objectivo de dividir a França e seus aliados. Ao Reino Unido procurou mostrar o perigo de uma aliança com a França porque tal implicaria arrastar os britânicos para uma guerra no Continente europeu, precisamente a situação que o Governo Britânico tinha procurado evitar com a sua atitude de isolamento. Friedrich August Karl Ferdinand Julius von Holstein (1837-1909), a “eminência parda” do Ministério dos Negócios Estrangeiros alemão, acreditava que a ligação entre o Reino Unido e a França não passava de uma amizade “platónica” e que o Reino Unido não apoiaria a França. A Rússia, por seu lado, encontrava-se neutralizada por duas questões: uma interna, a Revolução Russa de 1905, e outra externa, a Guerra Russo-Japonesa (8 Fevereiro 1904 – 5 Setembro 1905). Nestas condições, a Rússia não conseguia cumprir com as suas obrigações previstas na Aliança Franco-Russa de 1892. Nesta caso, o Imperador e o Governo alemão procuraram demonstrar a Nicolau II o pouco apoio que a França lhe dava.

No dia 31 de Março de 1905, o vapor alemão “Hamburg” que percorria o Mediterrâneo e transportava o Imperador Guilherme II, dirigiu-se para Tânger. O Imperador desembarcou e teve uma recepção calorosa. Encontrou-se com o representante francês em Tânger e com o tio do Sultão. O Imperador não fez nenhuma declaração pública, mas o secretário da delegação alemã coligiu as declarações que Guilherme II fez em círculos mais restritos e apresentou essa colectânea como uma declaração do Imperador da Alemanha. Nessa “declaração”, o Imperador pronunciou-se a favor de um sistema de “porta aberta” e também contra os monopólios e contra a anexação de Marrocos. O conteúdo da declaração produziu efeito, especialmente em França. Ficava claro que a Alemanha não aceitava as ambições francesas sobre Marrocos. Sem ter sido consultada, em especial quando foi construído o acordo de 1904 entre a França e o Reino Unido, a Alemanha fazia agora uma demonstração de força diplomática. Se a França prosseguisse com os seus planos, corria o risco de enfrentar também a força militar alemã.

 Entrada do Imperador Guilherme II em Tânger, a 31 de Março de 1905, em
https://fr.wikipedia.org/wiki/Crise_de_Tanger#/media/Fichier:Guglielmo_II_a_Tangeri_(1905).jpg

Délcassé considerava que a Alemanha estava a fazer bluff e que o Reino Unido era um aliado absolutamente seguro. Henry Charles Keith Petty-Fitzmaurice, 5.º Marquês de Lansdowne (1845-1927), Secretary of State for Foreign Affairs, não previra que o acordo franco-britânico pudesse conduzir a um conflito com a Alemanha. O Governo britânico definiu que o caminho a seguir era dar à França todo o apoio dentro dos termos do acordo e, simultaneamente, tentar encontrar forma de satisfazer a Alemanha. Mas esta parecia querer nada menos que a destruição da Entente Cordiale. A atitude alemã foi vista pela comunicação social britânica não como a defesa dos seus legítimos interesses económicos, mas como um ataque à Entente. Em França a generalidade das pessoas tinha a mesma visão dos acontecimentos. Neste ambiente em que a ameaça de guerra estava sempre presente sucediam-se as declarações dos responsáveis políticos sobre a vontade de manter a paz. «Nenhuma pessoa sã em Inglaterra deseja ter um conflito ou uma guerra com a Alemanha», dizia Arthur James Balfour (1848-1930), primeiro-ministro do Reino Unido, ao embaixador alemão em Londres. No entanto, Edward Grey (1862-1933), Secretary of State for Foreign Affairs (10 Dezembro 1905 – 10 Dezembro 1916), avisou o embaixador alemão de que, no caso de a Alemanha atacar a França por causa da questão de Marrocos, nenhum Governo britânico poderia permanecer neutral. Num memorando de 19 de Fevereiro de 1906, Edward Grey explicava os seus motivos: «Os Estados Unidos desprezar-nos-iam, a Rússia pensaria que não valia a pena fazer um acordo amigável connosco sobre a Ásia, o Japão preparar-se-ia para se  ressegurar noutro lado, seríamos deixados sem um amigo e sem o poder de fazer um amigo, e a Alemanha tiraria alguma satisfação, depois do que se passou, explorando bem a situação para nossa desvantagem.» Bullow escrevia nas suas memórias: «Não era meu desejo que fizéssemos guerra à França. Não a queria naquele momento, nem a quis mais tarde.»

O Governo francês compreendeu que a diplomacia de Déclassé podia ter consequências desastrosas para a França. Maurice Rouvier (1842-1911), presidente do Conselho de Ministros francês entre 24 Janeiro 1905 e 12 Março 1906, decidiu, com o apoio da maioria dos seus ministros, seguir um caminho diferente. Aliás, o próprio “grupo colonial” (os defensores da expansão colonial) deixou também de apoiar Délcassé porque considerava que para manter uma política colonial activa e canalizar para aí parte importante dos seus recursos implicava manter boas relações com a Alemanha. Délcassé deixou de ter apoios para prosseguir a sua política. Por outro lado, Rouvier tomou conhecimento pelas chefias militares do estado de fraqueza, material e moral, em que se encontrava o Exército. No dia 26 de Abril, numa reunião com o embaixador alemão, Hugo von Radolin (1841-1917), deu-lhe a entender que estava perto de demitir Délcassé, o que materializaria uma mudança de direcção na política externa francesa. Um telegrama enviado por Radolin para Berlin foi interceptado pelos serviços do Ministério dos Negócios Estrangeiros francês e Délcassé tomou conhecimento, dessa forma, das intenções de Rouvier. No conselho de ministros de 6 de Junho de 1905, completamente isolado, Délcassé demitiu-se. Esta foi uma vitória da diplomacia alemã.

A política conciliadora de Rouvier, relativamente à Alemanha, correspondia à vontade dominante em França. Houve troca de correspondência sobre Marrocos entre as duas diplomacias e, no dia 8 de Julho de 1905, foi aceite por ambas as partes a realização de uma conferência internacional destinada a regular a questão marroquina. O Governo francês definiu que as questões coloniais, de Marrocos ou outras, assim como as questões relativas aos interesses económicos, deviam ser regulados pacificamente mesmo com a Alemanha. Contudo, as relações franco alemãs tiveram novo momento de tensão quando a diplomacia alemã se esforçou por obter uma aliança com a Rússia.

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