quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

As Convenções de Haia de 1899 e 1907


Existiram várias Convenções de Haia. Para o tema que estamos a tratar é importante referir as Convenções de 1899 e de 1907, oficialmente chamadas “Convenção sobre a Resolução Pacífica de Controvérsias Internacionais (1899)” e com o mesmo título a de 1907. Juntamente com as Convenções de Genebra, as Convenções de Haia foram realizadas para clarificar e codificar as regras relativas à limitação de armas, à ocorrência e à conduta da guerra num corpo de leis internacionais. Esteve planeada uma terceira conferência para 1914, mas a situação de guerra que então se iniciou obrigou a reagendá-la para o ano seguinte – o que mostra a ideia errada que ainda existia sobre o que seria um conflito generalizado – não chegando a ser realizada. As Convenções de Haia de 1899 e de 1907 foram os primeiros tratados multilaterais relativos à conduta da guerra. Os textos redigidos em 1899 basearam-se em grande parte no Lieber Code, em vigor nas forças da União por iniciativa do presidente Abraham Lincoln, a 24 de Abril de 1863, durante a Guerra Civil Americana (12 Abr 1861 – 9 Mai 1865). Os textos do Lieber Code tinham já sido adoptados por várias instituições militares na Europa.

A primeira Conferência surgiu por proposta de Nicolau II da Rússia e teve início a 18 de Maio de 1899 e terminou a 29 de Julho. A acta final da Conferência (Convenção respeitante às Leis e Costumes da Guerra) continha cinco artigos e um anexo (Regulamentos respeitantes às Leis e Costumes da Guerra em Terra) constituído por sessenta artigos divididos em quatro Secções (Sobre os Beligerantes, sobre os Doentes e Feridos, sobre a Autoridade Militar em Território Hóstil, sobre o Internamento dos Beligerantes e o Cuidado dos Feridos em Países Neutrais).

Primeira Convenção de Haia (1899)
https://pt.wikipedia.org/wiki/Conven%C3%A7%C3%B5es_da_Haia_(1899_e_1907)#/media/Ficheiro:The_First_International_Peace_Conference,_the_Hague,_May_-_June_1899_HU67224.jpg

A Segunda Conferência, convocada por sugestão do presidente dos EUA, Theodore Roosevelt, para 1904, acabou por ser adiada por causa da Guerra Russo-Japonesa (1904-1905) e foi realizada entre 16 de Junho e 18 de Outubro de 1907. Esta Conferência tinha como objectivo expandir as convenções de 1899 e alterando algumas partes e acrescentando novos tópicos. Teve como resultado um conjunto de convenções que continham poucos avanços relativamente à Primeira Conferência.

Ambas as conferências incluíram negociações respeitantes a desarmamento, leis de guerra e crimes de guerra. Em ambas foi tentada a criação de um tribunal internacional obrigatório para a mediação das disputas internacionais e em ambas falhou este objectivo por oposição da Alemanha e alguns países que a seguiram. Contudo, no Tribunal Permanente de Arbitragem, criado em 1899, passou a dispor de mais meios para a arbitragem voluntária a que as Potências podiam recorrer. Em 1907, foi dada maior atenção às questões navais. Os Britânicos tentaram garantir a limitação dos armamentos, mas não tiveram sucesso perante a oposição da Alemanha e seus aliados. A Alemanha temia que os britânicos conseguissem fazer aprovar uma convenção que impedisse o crescimento da sua frota.

Na preparação para a Segunda Conferência de Haia, em Inglaterra, a questão do desarmamento foi discutida no Parlamento que emitiu uma declaração afirmando que «a grande e crescente despesa feita com armamentos condicionava o crédito nacional e comercial, adicionava ao problema do desemprego a diminuição de recursos disponíveis para as reformas sociais e era um fardo particularmente pesado para as classes trabalhadoras.» Faltava dar passos concretos a favor do desarmamento e esses passos teriam de ser uma iniciativa do Reino Unido ou seria muito mais difícil caminhar nesse sentido já que, como afirmava Sir Edward Grey, todos estavam à espera uns dos outros. No entanto, as propostas de Grey não tiveram muita aceitação no Governo alemão. Parte da opinião pública conservadora na Alemanha estava disposta a aceitar uma limitação temporária de armamentos por forma a poupar dinheiro para as obras de alargamento do Canal de Kiel e outras obras importantes.

Um artigo publicado no Kölnische Zeitung explicava a relutância da Alemanha em aceitar a limitação de armamentos no que respeitava aos recursos navais. No artigo era afirmado que o armamento da Alemanha não podia ser medido pelos mesmos critérios do Reino Unido ou da França, dado que a frota alemã se encontrava no estádio inicial de desenvolvimento. Sendo assim, a Alemanha defendia que as outras Potências deviam permitir que a Alemanha desenvolvesse os seus armamentos navais até ao mesmo nível que aquelas Potências. A Alemanha receava que o Reino Unido utilizasse a Segunda Conferência de Haia para a obrigar a manter a sua frota no nível alcançado até aí.

O processo para a redução ou limitação de armamentos era complexo e difícil de ser aceite por cada uma das partes quando os pontos de vista eram tão divergentes, mas os Britânicos tinham dado um passo importante. Um ano antes da realização da Conferência, em Julho de 1906, os Britânicos anunciaram que iriam reduzir a construção de quatro para três e que a construção de um destes três seria suspensa e poderia vir a ser cancelada se as Potências participantes na Conferência de Haia aceitassem a redução de armamentos. A proposta britânica não foi bem aceite interna e externamente. Internamente, porque muitos receavam que o Reino Unido perdesse a supremacia naval, garante da sua independência. Externamente, porque outras Potências, como por exemplo a Alemanha e a França, consideravam que deviam primeiro recuperar o atraso em que se encontravam no desenvolvimento das suas frotas. «O ponto de vista da Bélgica era de que a Grã-Bretanha estava simplesmente à procura de uma forma barata de manter a sua supremacia naval.»

A frota russa tinha sido destruída na guerra com o Japão (1904-1905) e não houve oposição a que a Rússia reconstruísse a sua marinha. A marinha alemã não sofrera um desastre como o que sucedeu com a da Rússia, mas não tinha atingido ainda a dimensão que os Alemães consideravam adequada para a sua defesa. Nesta situação, o Governo alemão não desejava negociar a limitação de armamentos, tanto mais que o Reino Unido já deixara claro que pretendia manter a supremacia naval e estava preparado para suportar os custos elevados dessa política. Um aumento na construção naval alemã conduziria a um aumento correspondente na construção naval britânica e o caminho seguido por estas duas Potências arrastaria outras no mesmo sentido. Se a Grã-Bretanha pretendia continuar a ter a supremacia naval, qual das outras Grandes Potências tomaria a iniciativa de, voluntariamente, impor restrições no que respeita ao seu próprio programa de desenvolvimento naval?

Tanto o Reino Unido como a Alemanha subscreveram as convenções produzidas na Segunda Conferência de Haia, mas estas não significaram mais que um tímido avanço relativamente à primeira. A discussão sobre a limitação de armamentos morreu. O relacionamento entre as duas Potências era francamente amistoso ao nível das respectivas casas reais, mas não ao nível dos respectivos governos.

Acordos anglo-alemães sobre as colónias portuguesas

Após o ultimatum britânico de 1890, Portugal e o Reino Unido chegaram a um acordo diplomático. O ultimatum surgiu sob a forma de um memorando enviado pelo Governo britânico a 11 de Janeiro de 1890, apesar de vários acordos celebrados entre os dois países sobre as respectivas colónias. A desproporção das forças entre Portugal e o Reino Unido resolveu o diferendo relativo à questão do “Mapa cor-de-rosa”. Portugal foi obrigado a ceder e a 20 de Agosto de 1890 foi assinado um acordo que nunca chegou a ser ratificado. Realizaram-se novas negociações e concluiu-se um tratado que foi assinado a 11 de Junho de 1891 e ratificado a 27 de Junho. Este tratado definia fronteiras e zonas de influência portuguesas e britânicas assim como estipulava as condições para o tráfego de pessoas e bens nos rios Zambeze e Chire. No entanto, este Tratado não garantia a integridade das colónias portuguesas.

1891 foi também o ano de uma grave crise económica e financeira em Portugal. Esta situação obrigou o Governo português a suspender o pagamento dos juros da sua dívida externa. O pico do peso da dívida pública, em percentagem do PIB, ocorreu no ano fiscal de 1892-1893 (124,3%). 0 Decreto de 13 de Junho de 1892, ratificado pela Lei de 25 de Maio de 1893, suspendeu parcialmente o pagamento dos encargos da dívida externa. Esta situação de suspensão parcial de pagamentos durou até 1902. A crise política agravava a crise financeira. As amortizações da dívida estavam atrasadas. «O ministro alemão em Lisboa, Conde de Tattenbach, fazia pressão sobre o governo e tentava levar outras potências a uma demonstração naval no Tejo, idêntica à que a Alemanha, Inglaterra e Itália fizeram para a Venezuela.»

As dificuldades económicas e financeiras de Portugal arrastaram-se apesar dos esforços desenvolvidos pelos seus governantes. Quando foi necessário recorrer a um novo empréstimo externo, foram iniciadas negociações com o Governo britânico que decorreram em 1897 e 1898. O empréstimo foi negociado em condições que implicavam «a garantia, por parte da Inglaterra, da defesa de Portugal contra-ataques externos nas suas colónias, com reserva de opção, caso Portugal quisesse alienar qualquer território.» Tais condições poderiam proporcionar grandes benefícios ao Reino Unido e, por isso, a Alemanha mostrou de imediato a sua oposição. As negociações foram canceladas por ordem de D. Carlos, mas Portugal não negociou o empréstimo com a Alemanha.

As grandes colónias portuguesas em África - Angola e Moçambique - objecto da cobiça alemã e britânica
(https://pt.wikipedia.org/wiki/Imp%C3%A9rio_Portugu%C3%AAs#/media/Ficheiro:Mapa_Cor-de-Rosa.jpg)

Atendendo à posição que as colónias portuguesas de Angola e Moçambique ocupavam, fazendo fronteira com colónias britânicas e alemãs, ambas as Potências com intenções expansionistas embora em campos antagónicos e atendendo às graves crises económicas e financeiras de Portugal, onde chegou a ser levantada a hipóteses de alienação das colónias a fim de pagar a dívida, o Reino Unido e a Alemanha concordaram em definir entre si as respectivas zonas de influência nos territórios portugueses. As conversações que se seguiram permitiram ao Reino Unido e à Alemanha chegarem a um acordo. Este foi assinado a 30 de Agosto de 1898, em Londres, pelos representantes britânico e alemão. Este acordo foi mantido secreto no seu conteúdo, mas a sua existência foi dada a conhecer ao embaixador português em Londres.

O Acordo Anglo-Alemão de 30 de Agosto de 1898 estava inscrito em três documentos:
  • A primeira Convenção estipulava que um empréstimo feito a Portugal deveria ser comum ao Reino Unido e à Alemanha e teria como garantia os rendimentos das alfândegas de Angola, Moçambique e Timor; também estipulava que ao Reino Unido caberiam as alfândegas da parte de Moçambique a sul do rio Zambeze e a parte norte de Angola; à Alemanha caberiam as alfândegas da parte meridional de Angola, a região de Moçambique a norte do Zambeze e Timor.
  • A segunda Convenção, secreta, regulava a atitude a assumir pelo Reino Unido e pela Alemanha nas regiões mencionadas na primeira Convenção, no caso de Portugal não cumprir as obrigações da dívida. Ao verificar-se esta situação, as colónias indicadas passariam para o reino Unido e para a Alemanha e, sendo assim, aquelas eram consideradas desde logo como respectivas zonas de influência.
  • Uma nota secreta sobre concessões nas esferas de influência. A nota esclarecia que «qualquer vantagem obtida do Governo português por uma das Potências na sua esfera de influência deveria logo ser acompanhada por vantagem análoga para a outra Potência na esfera que lhe era reservada.

Este acordo, pelos seus termos, dava como adquirida a incapacidade de Portugal honrar as suas obrigações relativamente aos seus empréstimos. Por outro lado, ao colocar a esfera de influência da Alemanha, em Moçambique, a norte do Zambeze, impediu os Alemães de apoiarem os Bóeres no Transval durante a Segunda Guerra dos Bóeres. Para Portugal era importante, perante este acordo, procurar outra fonte de financiamento e relembrar ao Reino Unido as responsabilidades que lhe competiam nos termos dos acordos estabelecidos com Portugal. A Segunda Guerra dos Bóeres proporcionou ao Governo português a oportunidade para uma contra-ofensiva diplomática dado que o Reino Unido necessitava fazer passar tropas e abastecimentos pelos portos portugueses, especialmente por Lourenço Marques (Maputo). Em Portugal, a opinião pública mostrava-se, no entanto, «francamente pró-bóer, conservando os sentimentos anti-britânicos suscitados pelo ultimatum

Para o Governo português «só podíamos favorecer a Grã-Bretanha na sua posição na África do Sul desde que fossemos solicitados a fazê-lo em nome da aliança, mas para isso era necessário revigorar esta em termos inequívocos, que vinculassem a nossa aliada ao compromisso tradicional de colaborar connosco na manutenção da integridade territorial não só da Metrópole como do Ultramar.» Um ano depois de assinado o acordo com a Alemanha, a 14 de Outubro de 1899, foi assinada uma Declaração secreta luso-britânica que ficou conhecida por Tratado de Windsor (tal como o Tratado assinado no século XIV). Esta Declaração garantia, por parte do Reino Unido «a manutenção da integridade dos territórios portugueses, tanto da Metrópole como das possessões ultramarinas.»

O Telegrama Kruger (3 de Janeiro de 1896)

Bismarck abandonou o poder a 20 de Março de 1890. A Alemanha definiu uma nova política (Weltpolitik/Política mundial), destinada a aumentar a sua influência no cenário internacional. O Tratado de Resseguro (1887) não foi renovado e foi estabelecida uma aliança entre a França e a Rússia (1892), reforçada em 1894 por uma convenção militar. A aliança entre a França e a Rússia colocava a Alemanha numa posição difícil porque tornava muito mais provável uma guerra em duas frentes. Contudo, a partir daquele ano e até 1905, a Rússia foi absorvida pelos acontecimentos no Extremo Oriente, o que tornava difícil a cooperação com a França. No entanto, a Alemanha explorou ao máximo todas as oportunidades para mostrar que o seu apoio era necessário a estas Potências. Foi o que sucedeu com o apoio à França em 1894, em África, na questão da delimitação do Estado Livre do Congo, ou em 1895, quando apoiou a França e a Rússia que exigiam que o Japão renunciasse a ganhos territoriais resultantes da guerra com a China. Com o Reino Unido, apesar de algumas tentativas para uma aproximação, a Alemanha, com a sua diplomacia um tanto errante, criou situações de conflito.

A estabilidade obtida na Europa permitiu às principais Potências desenvolverem políticas de expansão, especialmente em África e no Extremo Oriente. Apesar das rivalidades existentes, a Alemanha e o Reino Unido assinaram, a 1 de Julho de 1890, o Tratado de Zanzibar-Heligolândia, favorável aos Britânicos na África Oriental e aos Alemães no Mar do Norte. Contudo, a 3 de Janeiro de 1896 um acontecimento mostrou a fragilidade e a tensão das relações entre as duas Potências: o chamado “telegrama Kruger”. Na África do Sul, os Bóeres e os Britânicos enfrentaram-se em guerras declaradas por duas vezes. A Primeira Guerra dos Bóeres decorreu entre 20 de Dezembro de 1880 e 23 de Março de 1881 e terminou com a derrota das forças britânicas. A Segunda Guerra dos Bóeres decorreu entre 11 de Outubro de 1899 e 31 de Maio de 1902 e, ao contrário da primeira, terminou com uma vitória britânica. Entre estas duas guerras, registaram-se confrontos entre Bóeres e Britânicos.

Stephanus Johannes Paulus (Paul) Kruger, presidente da República do Transval, entre 9 de Maio de 1883 e 31 de Maio de 1902  (https://en.wikipedia.org/wiki/Paul_Kruger#/media/File:KrugerPaulusJohannes.jpg)

Em 1857, os Bóeres – descendentes dos colonos oriundos dos Países Baixos, da Alemanha e da Dinamarca - tinham proclamado a República do Transval, com capital em Pretoria. Entre 1883 e 1902, foi seu presidente Stephanus Johannes Paulus Kruger (1825-1904), geralmente conhecido como Paul Kruger. O Transval é hoje uma região da África do Sul conhecida pelas sua riqueza em diamantes e ouro descobertos em 1868 e 1898 respectivamente. Além da república do Transval, existia outro Estado Bóer, o estado Livre de Orange. Ainda existiam outros Estados Bóeres que foram sendo anexados pela Colónia do Cabo. A ambição do Governo britânico, sob a liderança de Benjamin Disraeli (1804-1881), primeiro-ministro britânico entre 20 de Fevereiro de 1874 e 21 de Abril de 1880, o Governo britânico ambicionou criar uma federação na África Austral na qual estariam incluídas todas as repúblicas bóeres. A quase totalidade das repúblicas foi anexada sem grande resistência. A República do Transval enfrentou os Britânicos na sua expansão na África do Sul.

A revolta dos Bóeres do Transval, sob a liderança de Paul Kruger, deu origem à chamada Primeira Guerra dos Bóeres (1880-1881). Esta guerra nunca absorveu grandes efectivos. Das batalhas que foram travadas entre as forças bóeres e britânicas, só na Batalha de Laing's Nek (28 Janeiro 1881) cada uma das forças empenhou mais de mil homens. Numa guerra deste tipo, em que a força militar bóer, constituída por uma milícia que formava grupos chamados “comandos”, era conhecedora do terreno e muito móvel, os Britânicos necessitavam de uma força muito superior àquela de que dispunham na região para dominarem os insurrectos. Após quatro batalhas perdidas, William Ewart Gladstone (1809-1898), o primeiro-ministro britânico desde 23 de Abril de 1880, compreendeu que para continuar o conflito seria necessário enviar avultados reforços de tropas e equipamentos. Sendo assim, optou por um gesto conciliatório e foi estabelecido um armistício a 6 de Março de 1881. No dia 23 de Março foi assinado um Tratado de Paz provisório que tomaria a forma definitiva com a Convenção de Pretoria, assinada a 3 de Agosto [Texto da Convenção de Pretoria em https://en.wikisource.org/wiki/Pretoria_Convention]. Esta Convenção sofreu algumas alterações e foi substituída em 1884 pela Convenção de Londres [Texto da Convenção de Londres em https://en.wikisource.org/wiki/London_Convention]. Estava garantida a independência do Transval.

Cecil Rhodes, primeiro-ministro da Colónia do Cabo entre 17 de Julho de 1890 e 12 de Janeiro de 1896
(https://en.wikipedia.org/wiki/Cecil_Rhodes#/media/File:CecilRhodes.jpg)

Apesar das disposições das convenções assinadas em 1881 e 1884, existiam conflitos de interesses entre a Colónia do Cabo e o Transval, conflitos que poderiam pôr em causa a paz estabelecida. O rico território do Transval era alvo da cobiça do homem que presidia aos destinos políticos da Colónia do Cabo, Cecil John Rhodes (1853-1902). Rhodes tinha criado uma sociedade diamantífera, a De Beers Company, em 1874. Mais tarde, em 1889, criou uma companhia destinada a obter a exploração das jazidas de diamantes no Noroeste do Transval (região que se tornou mais tarde na Rodésia do Sul, hoje Zimbabwe. Também dirigiu no Transval uma sociedade mineira dedicada à exploração do ouro, a Gold Fields of South Africa. Foi este homem de negócios que o Governo britânico nomeou primeiro-ministro da Colónia do Cabo, cargo que assumiu a 17 de Julho de 1890. Nestas novas funções, criando uma profunda promiscuidade entre política e negócios, ainda podia contar com a protecção do Governo britânico.

O projecto de anexação das colónias bóeres continuava de pé. Cecil Rhodes estava convencido que tinha o apoio dos numerosos estrangeiros residentes no Transval (Uitlanders) e não teve escrúpulos em organizar uma revolta que deveria proporcionar a anexação do Transval pela Colónia do Cabo. Entre 29 de Dezembro de 1895 e 2 de Janeiro de 1896, Leander Starr Jameson (1853-1917), da British South Africa Company (BSAC), com uma força formada por elementos da BSAC e da polícia do Protectorado da Bechuanalândia, invadiram a República do Transval com a intenção de provocar a esperada insurreição dos Uitlanders. Esta acção fracassou, não se verificou nenhuma insurreição e Jameson e os seus homens foram aprisionados e conduzidos para Pretoria.

A Alemanha teve mostrou sempre uma grande simpatia pela República do Transval onde exercia uma forte influência e encorajava as aspirações Bóeres. Cerca de quinze mil alemães tinham-se instalado no Transval após a descoberta de ouro em 1886. Empresas alemãs estabeleceram filiais em Pretoria. Uma linha de caminho de ferro que ligava Pretoria ao Oceano Índico, em Moçambique, estava a ser construída com maioria de capital alemão. Quando o resultado do Jameson raid foi conhecido em Berlim, o kaiser Guilherme II enviou um telegrama a Paul Kruger, com o seguinte texto:

«Expresso os meus sinceros parabéns porque, apoiado pelo seu povo e sem solicitar a ajuda de Potências amigas, obteve sucesso pela sua enérgica acção contra os bandos armados que invadiram o vosso país e perturbaram a paz e por ter sido capaz de restaurar a paz e defender a independência do país contra os ataques lançados do exterior.»

Pau Kruger respondeu a este telegrama da seguinte forma:

«Expresso a Vossa Majestade a minha mais profunda gratidão pelas felicitações de Vossa Majestade. Com a ajuda de Deus esperamos continuar a fazer tudo o que for possível pela existência da República.»

Na Alemanha, a opinião pública apoiou o telegrama do Kaiser, mas alguns órgãos de comunicação social deixaram claro que se tratava de uma derrota para o Reino Unido. Foi o caso do Allgemeine Zeitung de Munique que falava do «prazer universal sobre a derrota dos Ingleses». Friedrich von Holstein, que serviu no Ministério dos Negócios Estrangeiros alemão e defendia um entendimento com o Reino Unido, escreveu em 1907, já afastado do serviço: «A Inglaterra, aquela rica e plácida nação, foi empurrada para a sua actual atitude defensiva relativamente à Alemanha por contínuas ameaças e insultos por parte dos Alemães. O telegrama Kruger foi o primeiro deles.» De facto, para os britânicos, o telegrama significava que a Alemanha aprovava a independência do Transval. Além disso, a expressão “Potências amigas” utilizada no telegrama do Kaiser foi interpretada como uma indicação de que a Alemanha estaria disposta a apoiar militarmente o Transval.

Na realidade, a 30 de Dezembro de 1895, o cônsul alemão em Pretoria, von Herff, telegrafou para Berlim a pedir o desembarque de forças militares embarcadas em navios alemães fundeados na Baía de Lourenço Marques, hoje Baía de Maputo e na época conhecida por Delagoa-Bucht (em alemão) ou Delagoa Bay (em inglês), para serem transportadas por comboio para Johannesburg a fim de protegerem os súbditos alemães e a sua propriedade. No dia seguinte, 31 de Dezembro, o embaixador alemão em Londres, Conde Paul von Hatzfeldt (1831-1901), questionou oficialmente o Governo britânico sobre se tinha aprovado o Jameson raid. A resposta foi negativa e Salisbury garantiu que estavam a ser tomadas todas as medidas para pôr termo àquela acção. Hatzfeldt tinha instruções para, em caso de resposta afirmativa, solicitar o seu passaporte e cortar relações diplomáticas. Em Berlim, o embaixador britânico, Sir Frank Cavendish Lascelles (1841-1920), declarou que a força sob comando de Leander Jamson era uma força rebelde a quem já tinha sido dado ordem para retirar do Transval.

Na sequência do telegrama Kruger houve uma troca de correspondência entre Guilherme II, Imperador da Alemanha, e a rainha Vitória, sua avó. Numa carta escrita a 8 de Janeiro de 1896, Guilherme II afirmava que «nunca o Telegrama foi concebido como um passo contra a Inglaterra ou o seu Governo.» [MASSIE, 1991, p. 227-228] Em 1897, na Grã-Bretanha, foi formada uma comissão nas Câmara dos Comuns que, durante cinco meses, averiguou o envolvimento de Cecil John Rhodes e Joseph Chamberlain (1836-1914), o Secretário de Estado para as colónias. Esta comissão concluiu que seria impossível Chamberlain ter tido conhecimento antecipado da operação no Transval. No entanto, foram capturados documentos que provavam a cumplicidade de Cecil Rhodes.

A tensão entre a Alemanha e o Reino Unido atingiu um grau de perigosidade de que muitos não se terão apercebido. Lord Salisbury afirmou que o Jameson Raid foi uma acção insensata, mas que o Telegrama Kruger foi ainda mais tolo e que a guerra teria sido inevitável assim que o primeiro soldado alemão tivesse entrado no Transval e, nesse caso, o conflito daria origem a uma guerra europeia generalizada. Em todo este processo, assim como em muitas outras questões, a opinião pública teve sempre um grande peso nas decisões dos governantes. Disse ainda Lord Salisbury que «nenhum governo em Inglaterra poderia ter resistido à pressão da opinião pública.» [MASSIE, 1991, p. 230] Os Ingleses viram o Jameson Raid como uma acção destinada a defender os interesses britânicos e, por isso, ficaram surpreendidos com o teor do Telegrama Kruger. Esta questão revelou uma animosidade anglo-alemã até aí escondida pois era convicção geral que o Império Alemão, governado pelo neto mais velho da Rainha Vitória, era um dos amigos de Inglaterra. Afinal, o Tratado de Helgoland–Zanzibar (1890) tinha sido concluído com facilidade e tinham sido feitas várias tentativas de aproximação entre as duas Potências. Após a questão do Telegrama Kruger, passou a ser a Alemanha e não a França a ser olhada como um potencial antagonista.

O "esplêndido isolamento" do Reino Unido


A estratégia adoptada pelo Reino Unido caracterizava-se por uma participação no sistema europeu reduzida ao mínimo. Os Britânicos referiam-se ao seu país como o fiel da balança da Europa impedindo qualquer coligação de Potências de se tornar dominante. Esta prática podia ser adoptada pelos britânicos porque a sua posição geográfica lhes conferia uma grande vantagem defensiva e a sua marinha era superior a todas as outras então existentes. Entre 1875 e 1914, o exército britânico foi sempre o mais pequeno (mas não o mais barato) entre os exércitos das Grandes Potências europeias. Só em 1905 foi registada uma força ligeiramente superior a 200.000 homens, mas a Alemanha dispunha de um efectivo que era o triplo deste. No entanto, quando comparamos o poder naval das Grandes Potências da época, a situação inverte-se claramente conforme podemos ver no mapa seguinte

Tabela 1 - Tonelagem do poder naval


1880
1890
1900
1910
1914
Reino Unido
650.000
679.000
1.065.000
2.174.000
2.714.000
França
271.000
319.000
499.000
725.000
900.000
Rússia
200.000
180.000
383.000
401.000
679.000
Estados Unidos da América
169.000
240.000
333.000
824.000
985.000
Itália
100.000
242.000
245.000
327.000
498.000
Alemanha
88.000
190.000
285.000
964.000
1.305.000
Áustria-Hungria
60.000
66.000
87.000
210.000
372.000
Japão
15.000
41.000
187.000
496.000
700.000

Os números acima referidos sobre os exércitos não incluíam as tropas coloniais, espalhadas por um vasto império. A dimensão da marinha britânica procurava estar ajustada não apenas à defesa da Grã-Bretanha, mas também à manutenção do Império que cada vez mais se encontrava sob pressão das outras Potências. Kissinger explica-nos que «embora a França, a Alemanha e a Rússia estivessem frequentemente em conflito umas com as outras no Continente, elas sempre entraram em confronto com a Grã-Bretanha no ultramar. Apesar de a Grã-Bretanha possuir não só a Índia, Canadá e uma vasta porção de África, ainda insistia em dominar vastos territórios que, por razões estratégicas, desejava impedir que caíssem nas mãos de outra Potência embora não procurasse controlar directamente esses territórios. […] Essas áreas incluíam o Golfo Pérsico, a China, a Turquia e Marrocos. Durante a década de 1890, a Grã-Bretanha viu-se envolvida em confrontos sem fim com a Rússia no Afeganistão, à volta dos Estreitos e no Norte da China, e com a França no Egipto e em Marrocos.»

A Conferência de Algeciras (1906)


Algeciras é uma cidade portuária no sul de Espanha, localizada perto de Gibraltar. Foi nessa cidade que decorreu, entre 16 de Janeiro e 7 de Abril de 1906, a Conferência destinada a tratar da questão marroquina. A localização geográfica pesou na escolha de Algeciras porque esta cidade encontrava-se perto de Tânger. A Conferência não se realizou nesta cidade marroquina porque a instabilidade em Marrocos não o aconselhava. Os países que participaram na Conferência foram os mesmos que já tinham estado presentes na Conferência de Madrid de 1880: Reino Unido, Alemanha, Áustria-Hungria, Bélgica, Espanha, Estados Unidos da América, França, Itália, Marrocos, Países Baixos, Portugal, Rússia e Suécia.

Bülow e Holstein queriam mais que a demissão de Délcassé. Queriam impedir a França de transformar Marrocos num protectorado e queriam destruir a Entente Cordiale. Para atingirem estes objectivos, era necessário internacionalizar a questão de Marrocos. A Alemanha propôs, por isso, uma conferência internacional sobre Marrocos e, para forçar o Governo francês a aceitá-la, o embaixador alemão em Paris, no dia 10 de Junho de 1905, tinha deixado claro a Rouvier que «se a França tentar alterar por qualquer forma o status de Marrocos, a Alemanha apoiará o Sultão com todas as suas forças.» Na realidade, o Chanceler alemão sabia que a opinião pública alemã não aceitaria uma guerra por causa de Marrocos. A 28 de Setembro, a França e a Alemanha chegaram a acordo sobre a agenda da conferência.

A conferência foi realizada em 18 sessões durante as quais duas grandes questões estiveram na ordem do dia: a criação de um banco internacional em Marrocos e a organização da polícia nas principais cidades portuárias. O controlo da polícia era particularmente importante porque permitia controlar Marrocos. Por esta razão, os Alemães insistiram que a força de polícia devia ser internacionalizada, mas os Franceses opuseram-se e preferiram apoiar uma polícia marroquina. No dia 1 de Março, enquanto decorria a conferência, as frotas britânicas do Mediterrâneo e do Atlântico, vinte couraçados, dúzias de cruzadores e de contratorpedeiros, quase centena e meia de navios, numa forte demonstração de poder naval, aproximaram-se do porto de Gibraltar. Os delegados na Conferência foram convidados a jantar a bordo do navio almirante, o HMS King Edward VII.

Em Algeciras, a Alemanha obteve o contrário do que pretendia. Em vez de destruir a Entente Cordiale, provocou uma maior aproximação entre a França e o Reino Unido. A Entente Cordiale foi reforçada. A atitude na Alemanha, da opinião pública e do Reichstag, foi de desânimo, o que não impediu Bülow de defender a sua política. «O tratado pode não nos ter dado tudo o que desejávamos», mas «representa o essencial do que nos tínhamos esforçado por obter. Reafirmou a soberania do Sultão … a França não obteve o protectorado que desejava … permanecemos inabaláveis em defesa do princípio de Porta Aberta … a tentativa para nos excluírem de uma grande decisão internacional foi frustrada com sucesso.»

A Acta Geral da Conferência de Algeciras estava dividida em seis capítulos que englobavam cento e vinte e três artigos [Texto completo, em francês, da acta da Conferência de Algeciras em https://web.archive.org/web/20150919070809/http://www.historicaltextarchive.com/print.php?action=section&artid=28#]:

  • Uma declaração relativa à organização da polícia;
  • Um Regulamento respeitante à vigilância e repressão do contrabando de armas;
  • Uma Acta de Concessão de um Banco do Estado Marroquino;
  • Uma declaração respeitante a um melhor desempenho do sistema fiscal e à criação de novas receitas;
  • Um Regulamento sobre as Alfândegas do Império e a repressão da fraude e do contrabando;
  • Uma Declaração relativa aos Serviços Públicos e aos Trabalhos Públicos.


A polícia ficou colocada sob a autoridade do Sultão (Artigo 2), mas a Espanha e a França iriam disponibilizar oficiais e sargentos instrutores (Artigo 3) e eles deveriam «assegurar a instrução e a disciplina, em conformidade com o Regulamento que será estabelecido sobre a matéria; verificarão de igual forma para que os homens alistados possuam aptidão para o serviço militar. De uma forma geral, eles deverão supervisar a administração das tropas» (Artigo 4). Para o desempenho destas funções seria necessária a presença de 16 a 20 oficiais e 30 a 40 sargentos franceses e espanhóis (Artigo 5) todos pagos pelo Tesouro de Marrocos (Artigo 6). A inspecção geral da Polícia ficaria a cargo de um oficial superior do Exército Suíço (Artigo 7). «O quadro de Instrutores da Polícia Chérifienne (oficiais e sargentos) será espanhol em Tétuan, misto em Tânger, espanhol em Larache, francês em Rabat, misto em Casablanca e francês nos outros três portos» (Artigo 12).

O segundo ponto importante a tratar na Conferência ficou expresso no Capítulo III: «Será instituído em Marrocos um banco com o nome de “Banco do Estado de Marrocos”, para exercer os direitos a seguir especificados, cuja concessão será outorgada por Sua Majestade o Sultão, durante um período de quarenta anos a partir da ratificação da presente Acta» (Artigo 31) e este banco «desempenhará, com exclusão de qualquer outro banco ou estabelecimento de crédito, as funções de Trésorier-Payeur do Império» (Artigo 33). «O capital inicial do banco será dividido em tantas partes iguais quantas as partes interessadas entre as Potências representadas na Conferência e, para isso, cada Potência designará um Banco, que exercerá, seja para si ou para um grupo de bancos, o direito de subscrição especificado acima, bem como o direito de nomeação dos Administradores» (Artigo 56). A segurança e as finanças marroquinas ficavam inteiramente dependentes das outras Potências. Os Franceses não conseguiram ter uma influência preponderante no banco cuja criação estava a ser preparada, mas puderam exercer uma influência determinante sobre a organização da polícia nos portos de Marrocos.

A Primeira Crise de Marrocos (1905)


«Marrocos será para nós um objecto de compensação. Quantos mais interesses ali criarmos, mais essa compensação será necessária.» Com estas palavras, Bismarck punha em evidência uma das razões que o levaram a alterar a sua atitude relativamente a uma política colonial. A Alemanha, tal como outras Potências europeias, desenvolveu actividades económicas em Marrocos, mas sem que tenham atingido uma grande relevância. A partir de 1904, com a criação da Entente Cordiale, a questão de Marrocos tornou-se para os Alemães numa questão essencialmente política. Desde a sua unificação (1871), a Alemanha tornara-se uma Potência incontornável nas questões europeias e não estava disposta a abdicar desse estatuto.

Após a saída de Bismarck (1890), com a política mundial (Weltpolitik) adoptada por Guilherme II e seus governos, a Alemanha tinha necessidade de se afirmar nas questões internacionais – não apenas europeias - especialmente aquelas em que outras Potências europeias se encontravam envolvidas. A França e outras Potências não podiam tomar decisões sobre Marrocos sem consultarem a Alemanha. Esta posição era consensual na Alemanha, mas o mesmo não se passava quanto à perspectiva das consequências dessa tomada de posição. A questão marroquina tinha, por esta razão, um alcance que ia muito além do território de Marrocos e havia o perigo de, a partir daí, surgir um conflito franco-alemão, ou seja, uma guerra europeia que certamente escaparia aos limites europeus, alastrando por todos os continentes onde as Potências europeias defendiam os seus interesses. Isto podia suceder apesar de o chanceler alemão, Bernhard Heinrich Martin Karl von Bülow (1849-1929), chanceler entre 1900 e 1909, anunciar que do ponto de vista da Alemanha não era desejável que a França e o Reino Unido mantivessem boas relações a fim de preservar a paz no mundo, o que a Alemanha sinceramente desejava.

Mapa de Marrocos, em http://www.africa-turismo.com/marrocos/mapa.htm

Para o Governo alemão, era necessário provocar o afastamento do ministro francês dos Negócios Estrangeiros, Délcassé, por duas razões. Em primeiro lugar porque ele, hostil em relação à Alemanha e partidário de uma ligação mais íntima com o Reino Unido, teve um papel fundamental na construção da Entente Cordiale, ou seja, concluiu um acordo sobre Marrocos sem que a Alemanha tivesse sido consultada. De igual forma, conseguiu os acordos com a Itália [Ver o texto «06 - A Aliança Franco-Russa e a Aproximação Franco-Italiana»] e com a Espanha que, a 6 de Outubro de 1904, tinha estabelecido um acordo secreto com a França. A troco de apoio na política marroquina, a Espanha beneficiaria de concessões territoriais no Norte e no Sul de Marrocos. Em segundo lugar, porque existia a possibilidade de a França desempenhar um papel importante na mediação do conflito entre a Rússia e o Japão. «Se a mediação fosse bem-sucedida, a França desempenharia um papel de primeiro plano na política mundial e poderia até colocar-se à cabeça de uma “Quádrupla Aliança” composta pela França, Reino Unido, Rússia e Japão.»

Com estas perspectivas, a diplomacia alemã agiu com o objectivo de dividir a França e seus aliados. Ao Reino Unido procurou mostrar o perigo de uma aliança com a França porque tal implicaria arrastar os britânicos para uma guerra no Continente europeu, precisamente a situação que o Governo Britânico tinha procurado evitar com a sua atitude de isolamento. Friedrich August Karl Ferdinand Julius von Holstein (1837-1909), a “eminência parda” do Ministério dos Negócios Estrangeiros alemão, acreditava que a ligação entre o Reino Unido e a França não passava de uma amizade “platónica” e que o Reino Unido não apoiaria a França. A Rússia, por seu lado, encontrava-se neutralizada por duas questões: uma interna, a Revolução Russa de 1905, e outra externa, a Guerra Russo-Japonesa (8 Fevereiro 1904 – 5 Setembro 1905). Nestas condições, a Rússia não conseguia cumprir com as suas obrigações previstas na Aliança Franco-Russa de 1892. Nesta caso, o Imperador e o Governo alemão procuraram demonstrar a Nicolau II o pouco apoio que a França lhe dava.

No dia 31 de Março de 1905, o vapor alemão “Hamburg” que percorria o Mediterrâneo e transportava o Imperador Guilherme II, dirigiu-se para Tânger. O Imperador desembarcou e teve uma recepção calorosa. Encontrou-se com o representante francês em Tânger e com o tio do Sultão. O Imperador não fez nenhuma declaração pública, mas o secretário da delegação alemã coligiu as declarações que Guilherme II fez em círculos mais restritos e apresentou essa colectânea como uma declaração do Imperador da Alemanha. Nessa “declaração”, o Imperador pronunciou-se a favor de um sistema de “porta aberta” e também contra os monopólios e contra a anexação de Marrocos. O conteúdo da declaração produziu efeito, especialmente em França. Ficava claro que a Alemanha não aceitava as ambições francesas sobre Marrocos. Sem ter sido consultada, em especial quando foi construído o acordo de 1904 entre a França e o Reino Unido, a Alemanha fazia agora uma demonstração de força diplomática. Se a França prosseguisse com os seus planos, corria o risco de enfrentar também a força militar alemã.

 Entrada do Imperador Guilherme II em Tânger, a 31 de Março de 1905, em
https://fr.wikipedia.org/wiki/Crise_de_Tanger#/media/Fichier:Guglielmo_II_a_Tangeri_(1905).jpg

Délcassé considerava que a Alemanha estava a fazer bluff e que o Reino Unido era um aliado absolutamente seguro. Henry Charles Keith Petty-Fitzmaurice, 5.º Marquês de Lansdowne (1845-1927), Secretary of State for Foreign Affairs, não previra que o acordo franco-britânico pudesse conduzir a um conflito com a Alemanha. O Governo britânico definiu que o caminho a seguir era dar à França todo o apoio dentro dos termos do acordo e, simultaneamente, tentar encontrar forma de satisfazer a Alemanha. Mas esta parecia querer nada menos que a destruição da Entente Cordiale. A atitude alemã foi vista pela comunicação social britânica não como a defesa dos seus legítimos interesses económicos, mas como um ataque à Entente. Em França a generalidade das pessoas tinha a mesma visão dos acontecimentos. Neste ambiente em que a ameaça de guerra estava sempre presente sucediam-se as declarações dos responsáveis políticos sobre a vontade de manter a paz. «Nenhuma pessoa sã em Inglaterra deseja ter um conflito ou uma guerra com a Alemanha», dizia Arthur James Balfour (1848-1930), primeiro-ministro do Reino Unido, ao embaixador alemão em Londres. No entanto, Edward Grey (1862-1933), Secretary of State for Foreign Affairs (10 Dezembro 1905 – 10 Dezembro 1916), avisou o embaixador alemão de que, no caso de a Alemanha atacar a França por causa da questão de Marrocos, nenhum Governo britânico poderia permanecer neutral. Num memorando de 19 de Fevereiro de 1906, Edward Grey explicava os seus motivos: «Os Estados Unidos desprezar-nos-iam, a Rússia pensaria que não valia a pena fazer um acordo amigável connosco sobre a Ásia, o Japão preparar-se-ia para se  ressegurar noutro lado, seríamos deixados sem um amigo e sem o poder de fazer um amigo, e a Alemanha tiraria alguma satisfação, depois do que se passou, explorando bem a situação para nossa desvantagem.» Bullow escrevia nas suas memórias: «Não era meu desejo que fizéssemos guerra à França. Não a queria naquele momento, nem a quis mais tarde.»

O Governo francês compreendeu que a diplomacia de Déclassé podia ter consequências desastrosas para a França. Maurice Rouvier (1842-1911), presidente do Conselho de Ministros francês entre 24 Janeiro 1905 e 12 Março 1906, decidiu, com o apoio da maioria dos seus ministros, seguir um caminho diferente. Aliás, o próprio “grupo colonial” (os defensores da expansão colonial) deixou também de apoiar Délcassé porque considerava que para manter uma política colonial activa e canalizar para aí parte importante dos seus recursos implicava manter boas relações com a Alemanha. Délcassé deixou de ter apoios para prosseguir a sua política. Por outro lado, Rouvier tomou conhecimento pelas chefias militares do estado de fraqueza, material e moral, em que se encontrava o Exército. No dia 26 de Abril, numa reunião com o embaixador alemão, Hugo von Radolin (1841-1917), deu-lhe a entender que estava perto de demitir Délcassé, o que materializaria uma mudança de direcção na política externa francesa. Um telegrama enviado por Radolin para Berlin foi interceptado pelos serviços do Ministério dos Negócios Estrangeiros francês e Délcassé tomou conhecimento, dessa forma, das intenções de Rouvier. No conselho de ministros de 6 de Junho de 1905, completamente isolado, Délcassé demitiu-se. Esta foi uma vitória da diplomacia alemã.

A política conciliadora de Rouvier, relativamente à Alemanha, correspondia à vontade dominante em França. Houve troca de correspondência sobre Marrocos entre as duas diplomacias e, no dia 8 de Julho de 1905, foi aceite por ambas as partes a realização de uma conferência internacional destinada a regular a questão marroquina. O Governo francês definiu que as questões coloniais, de Marrocos ou outras, assim como as questões relativas aos interesses económicos, deviam ser regulados pacificamente mesmo com a Alemanha. Contudo, as relações franco alemãs tiveram novo momento de tensão quando a diplomacia alemã se esforçou por obter uma aliança com a Rússia.

A Guerra Russo-Japonesa (1904-1905)


A Guerra Russo-Japonesa teve início a 8 de Fevereiro de 1904 e terminou a 5 de Setembro de 1905 com a derrota da Rússia. Esta guerra envolveu os teatros de operações da Manchúria, da Coreia e do Pacífico Norte. No início da guerra, o Japão era considerado um pequeno país, pouco conhecido no Ocidente, que tinha cometido a imprudência de desafiar a Rússia, uma das cinco Grandes Potências europeias. Depois da guerra, encontramos uma Rússia derrotada, humilhada, a braços com uma revolução interna, e um Japão vitorioso, embora com graves problemas financeiros causados pela guerra, uma Potência com grandes ambições imperialistas.

O Japão já tinha mostrado o seu valor militar ao derrotar a China na Primeira Guerra Sino-Japonesa (1 de Agosto de 1894 a 17 de Abril de 1895). Após esta guerra, a China e a Rússia estabeleceram uma aliança que garantia ao czar o direito de lançar uma linha férrea através da Manchúria que ligasse Vladivostok a Porto Artur e, por isso, controlar uma extensa faixa de território chinês. Em 1898, a Rússia instalou uma base militar naval em Porto Artur. Com a frota russa estacionada em Porto Artur e o seu (russo) exército a ocupar a península de Liaotung, os Japoneses tiveram a percepção de que seria uma questão de tempo até os Russos avançarem para ocuparem a Península da Coreia. Sendo assim, começaram a melhorar o seu exército e a sua marinha de guerra.

Representação de um combate entre forças russas (à esquerda) e japonesas (à direita). A imagem pode ser vista em tamanho grande em https://ukiyo-e.org/image/mfa/sc131768

As forças navais japonesas eram superiores ao conjunto das forças navais russas disponíveis na região. O poder naval da Rússia no Extremo Oriente consistia em 7 velhos navios de guerra, 9 cruzadores, 25 contratorpedeiros e cerca de 30 outras embarcações de menor dimensão. Em Fevereiro de 1904, a frota principal encontrava-se em Porto Artur, dois cruzadores em Chemulpo (Inchon) na Coreia e outros quatro em Vladivostok, imobilizados pelo gelo. A força naval japonesa consistia em 6 navios de guerra recentemente renovados, 8 cruzadores, 25 cruzadores ligeiros, 19 contratorpedeiros, 85 barcos torpedeiros e mais 16 embarcações de menor dimensão. A marinha japonesa tinha sido desenvolvida com o apoio de uma missão naval britânica e parte importante dos seus navios eram de origem britânica. O poder naval russo em 1900 (medido em tonelagem) era de 383.000 contra 187.000 do Japão, mas a Rússia tinha a sua marinha de guerra concentrada em quatro frotas: Frota do Báltico, Frota do Norte, Frota do Mar Negro e Frota do Pacífico.

Os efectivos disponíveis para o exército dependem da população sobre a qual é feito o recrutamento. Em 1900, a Rússia tinha cerca de 135.600.000 de habitantes e o Japão não mais que 43.800.000. Em 1904 estes números eram superiores, mas com uma proporção semelhante. Apesar de terem uma população menos numerosa, os Japoneses podiam rapidamente colocar no terreno as suas forças terrestres com um efectivo de 280.000 homens e podiam enviar um reforço de 400.000 reservistas bem treinados. No início da guerra os Russos dispunham no Extremo Oriente 100 batalhões de infantaria, 30 baterias de artilharia e 75 esquadrões de cavalaria. Os Japoneses podiam empenhar de imediato 156 batalhões, 106 baterias e 54 esquadrões, sendo esta a arma em que se apresentavam mais fracos.


O problema dos Japoneses era transportar as suas forças entre o Arquipélago Nipónico e o Continente Asiático e assegurar uma testa de ponto suficientemente ampla e segura para permitir o desembarque das suas unidades militares e garantir as operações logísticas necessárias. Para tal seria necessário garantir a supremacia naval na região o que exigia iniciativa e surpresa, condições que o Japão garantiu lançando um ataque seguido de um bloqueio à esquadra russa fundeada em Porto Artur sem previamente ter declarado guerra à Rússia [A declaração de guerra é uma prática que se tornou obrigatória nos termos da Convenção (III) relativa à Abertura das Hostilidades, Haia, 18 de Outubro de 1907.  A Convenção foi assinada pelo representante Japonês, mas apenas foi ratificada a 13 de Dezembro de 1911 [Texto completo em https://ihl-databases.icrc.org/ihl/INTRO/190?OpenDocument ou http://avalon.law.yale.edu/20th_century/hague03.asp. Visto em 2019-05-16].

Os Russos tinham um problema diferente: a extensão da sua linha de comunicações. O transporte de pessoal e dos abastecimentos para o exército russo no Extremo Oriente era feito através de uma linha férrea, de via simples, com uma extensão de 8.850 Km entre Moscovo e Porto Artur. Os comboios tinham de esperar, em locais específicos da linha, pelos que transitavam em sentido oposto, o que tornava o trânsito lento e reduzia a capacidade de transporte desta infraestrutura. Estas dificuldades faziam com que o efectivo das forças militares russas no Extremo Oriente não ultrapassasse os 140.000 homens e mesmo assim o seu abastecimento seria feito com limitações.

No dia 8 de Fevereiro de 1904, os Japoneses lançaram um ataque naval de surpresa sobre a frota fundeada em Porto Artur e teve início o bloqueio do porto que durou até ao dia 2 de Janeiro de 1905 quando a guarnição do porto se rendeu. Todas as tentativas feitas pelas tropas e marinha russas para romperem o bloqueio resultaram em fracasso. No segundo dia das hostilidades foram afundados dois navios russos ancorados no porto de Chemulpo (Inchon), na Coreia. Foi aí que desembarcaram as primeiras tropas japonesas (12ª Divisão de Infantaria). Os Russos retiraram da Coreia e sofreram sucessivas derrotas na Manchúria. A Batalha de Mukden (21 de Fevereiro a 10 de Março de 1905) foi a última batalha terrestre travada entre as forças das duas Potências. Os Russos foram obrigados a recuar para não verem cortada a sua linha de comunicações, mas fizeram-no em boa ordem. Nesta altura, cada um dos contendores tinha no terreno mais de 300.000 homens.

A 27 de Maio de 1905 foi travada a Batalha Naval de Tsushima, uma vitória decisiva do Japão. Os Japoneses perderam três torpedeiros, mas afundaram 21 navios russos. As baixas japonesas foram de 117 mortos e 583 feridos, mas os Russos sofreram 4.380 mortos e viram capturados quase seis mil dos seus homens. Os Russos perderam nesta batalha parte da Frota do Báltico que tinha sido enviada para formar a Segunda Frota do Pacífico. O Japão, um pequeno país, pouco conhecido no Ocidente, tinha derrotado uma das cinco Grandes Potências europeias.

Almirante  Tōgō Heihachirō, comandante das forças navais japonesas na Batalha de Tushima [https://en.wikipedia.org/wiki/T%C5%8Dg%C5%8D_Heihachir%C5%8D#/media/File:Togo_Heihachiro_in_uniform.jpg]
Com crescentes dificuldades em continuar a guerra devido à contestação interna, a Rússia aceitou participar numa conferência em Portsmouth, New Hampshire, a fim de negociar com o Japão os termos da paz, com mediação do Presidente dos EUA, Theodore Roosevelt (1858-1919). O Japão, com dificuldades financeiras devido ao esforço de guerra, concordou em participar na conferência que decorreu de 9 a 29 de Agosto de 1905. No dia 5 de Setembro foi assinado o Tratado de Paz de Portsmouth. Foi reconhecida a conquista da Coreia pelo Japão, que também ganhou o controlo da Península de Liaotung e de Porto Artur, da metade sul da ilha de Sacalina e da linha férrea no sul da Manchúria que conduzia a Porto Artur que teve de ser abandonada pela Rússia.

O Governo do Czar estava a aproximar-se do fim. A má gestão da guerra, tanto pelos governantes como pelos generais, o seu elevado custo em recursos humanos e financeiros, encorajou os movimentos radicais em Moscovo e São Petersburgo que começaram a defender uma revolução. A revolta de 1905, que o Governo russo suprimiu, lançou as bases da Revolução de 1917, também esta lançada contra uma guerra que estava a ser perdida. Do lado do Japão, a vitória foi recebida com alguma crítica pela opinião pública que acreditava que o Japão merecia mais compensações de guerra, mas também incentivou a que fosse utilizado o poder militar para, na Manchúria ou outras regiões, fosse garantido o acesso a matérias primas que a industrialização exigia e que não existiam no seu território.

Pela primeira vez na História Moderna, um país asiático derrotava uma Potência europeia. Em África, os Italianos tinham sofrido uma humilhante derrota frente às tropas da Etiópia, na Batalha de Adwa, a 1 de Março de 1896, mas os Etíopes tinham uma superioridade numérica de 5 para 1. Mas o mais importante desta guerra é que ela constituiu uma antevisão do iria acontecer na Primeira Guerra Mundial. As frentes de batalha eram extensas, as batalhas prolongaram-se por alguns dias e foram amplamente utilizadas trincheiras, metralhadoras, morteiros, granadas, minas terrestres e navais, arame farpado, tiro indirecto de artilharia, transmissões rádio e até actividades de uma verdadeira guerra electrónica. Em ambos os lados existiam observadores ocidentais que reportaram para os seus exércitos o que puderam observar. Segundo estes observadores, o soldado russo era corajoso e com elevado espírito de sacrifício, mas os seus oficiais mostraram-se incapazes de desempenharem as funções para que tinham sido nomeados. Sobre os militares japoneses referiram a sua excelente preparação e o seu sentido do dever que atingia o nível do fanatismo.