terça-feira, 11 de março de 2025

Planos de guerra: doutrinas militares e condicionantes estratégicas

Doutrinas militares

As doutrinas militares devem ser consistentes com a tecnologia e os recursos disponíveis. Estes devem ser proporcionados à instituição militar por forma a seja exequível atingir os objetivos estratégicos e militares superiormente definidos. Mas a instituição militar deverá estar atenta ao evoluir das tecnologias, já que estas trazem normalmente alterações nas doutrinas utilizadas. Embora seja possível, inicialmente, manter uma determinada tecnologia exclusiva de uma dada potência, mais cedo ou mais tarde, essa tecnologia encontrar-se-á no domínio de todas as outras potências que possuam os recursos necessários para a produzir ou adquirir no exterior. O mesmo sucede com as doutrinas militares e é dessa forma que o “primado da ofensiva” aparece largamente partilhado pelas grandes potências militares do início do século XX [MARRIL, 2014, § 1].

O tenente-coronel Louis Loyzeau de Grandmaison (1861-1915), chefe da Repartição de Operações (3ª Rep.) do Estado-Maior do Ministério da Guerra, publicou, em 1906, o livro “O treino da infantaria para o combate ofensivo” (Le dressage de l’infantarie en vue du combat offensif). Trata-se de uma obra inteiramente dedicada, como o título indica, ao treino da infantaria francesa para as operações ofensivas. Em 1911, ao tomar posse como Chefe do état-major général de l’Armée - já não era do Ministério da Guerra - o general Joffre deu ênfase ao papel da 3ª Repartição como centro doutrinário. Nesse mesmo ano, o coronel Grandmaison publicou “Duas cconferências destinadas aos oficiais do estado-maior do Exército” (Deux conférences faites aux officiers de l’état-major de l’Armée), onde colocou em destaque o primado da “vontade” caro a Clausewitz e pedra angular dos princípios da guerra do general Foch, isto é, impor a sua vontade ao inimigo, o que implicava atacar independentemente do que este faça [MARRIL, 2014, § 4 e 5]. Com esta linha de pensamento, ao serem desenvolvidos os planos, não eram considerados os modos de ação do inimigo e o estudo das relações de força. O reconhecimento deveria limitar-se a localizar as forças principais do adversário para o comandante, tomar a iniciativa e desencadear uma ação ofensiva, não deixando o inimigo reagir eficazmente em tempo oportuno. Grandmaison defendia que «a superioridade moral imposta ao inimigo pelo ataque devia implicar da sua parte uma atitude de pura reação, preservando desta forma a liberdade de ação do atacante.» [MARRIL, 2004, § 7]

O regulamento do serviço de campanha de 1913 insistia na vantagem da ofensiva. «Só a ofensiva consegue quebrar a vontade do adversário.» [MARRIL, 2014, § 10] A prioridade era atacar e o general Charles Mangin (1866-1925) traduziu da seguinte forma essa máxima: «fazer a guerra, é atacar.» Este regulamento privilegiava a moral e a vontade: «As batalhas são sobretudo lutas morais; a derrota é inevitável desde que cesse a esperança de vencer… Possivelmente, uma única grande batalha será suficiente para decidir a guerra.» [MARRIL, 2014, § 10] Este conceito ofensivo, a “ofensiva a todo o custo” (ofensive à outrance), não se limitou à França, mas, em maior ou menor grau, contagiou todos os exércitos modernos.

Na Alemanha, Alfred von Schlieffen «afirmava que a melhor forma de se defender era atacar. Sem renunciar à defensiva, ele estimava que não se deve nunca submeter passivamente à vontade dele (inimigo), mas antes, impor-lhe a nossa vontade fazendo a mais possível prova de agressividade.» E num outro testemunho: «Se temos uma frente vasta, disse ele, o inimigo tem toda a latitude para romper a fraca linha que se lhe opõe, no ponto por ele escolhido, utilizando todo o poder conferido pela sua superioridade. É a maldição que pesa sobre a defensiva. Em consequência, é preferível atacar ao invés de esperar.» [CARRIAS, 2010, p. 300] Da mesma forma, o manual de campanha britânico, de 1909, estabelecia que «no combate, o sucesso decisivo só pode ser obtido por uma ofensiva vigorosa. Todo o chefe que oferece o combate deve então estar decidido a, cedo ou tarde, tomar a ofensiva.» [MARRIL, 2004, § 12] No entanto, com maior prudência e tendo em conta a experiência adquirida na Guerra dos Bóeres, também preconizava que se a situação não fosse favorável ao ataque, seria preferível, quando possível, manobrar por forma a procurar uma situação mais favorável à ofensiva.

Os manuais mais modernos das Potências europeias defendiam, portanto, o primado da ofensiva. Esta tendência teve uma influência decisiva na tática, na organização e também nas estratégias escolhidas, ou seja, nos planos que foram postos em prática em 1914. Não pensavam os responsáveis políticos e militares que, pouco depois do ímpeto ofensivo inicial em que procuraram uma vitória rápida, as forças no campo de batalha europeu seriam incapazes de executar o que os seus regulamentos tanto defendiam. No entanto, o que se passou em seguida não pode ter sido uma completa surpresa, pois já em 1898, Bloch escrevera: «Na próxima guerra, todos estarão entrincheirados. Será uma grande guerra de trincheiras. Para o soldado, a pá será tão indispensável como a espingarda. […] Os soldados podem lutar como quiserem; a decisão final estará nas mãos da fome.» [citado em MARTELO, 2013, p. 205] Quando falámos dos desenvolvimentos tecnológicos, vimos que o grande poder de fogo das metralhadoras e da artilharia, as trincheiras e o arame farpado, entre outras tecnologias, proporcionavam grande vantagem à defesa.

As condicionantes estratégicas

Na Europa, o sistema de alianças em vigor formava dois blocos antagónicos: a Tríplice Aliança e a Tríplice Entente. Existiam outros acordos e alianças como, por exemplo, a aliança entre a Áustria-Hungria e a Roménia, mas foram aqueles dois blocos que definiram as principais estratégias no início e durante a guerra. A Tríplice Aliança (1882-1914) estava, na prática, reduzida à Aliança Dual (1879-1918) já que a Itália era o seu elo fraco e, além disso, sem perder os benefícios da aliança com a Alemanha, tinha estabelecido um acordo secreto com a França (1902). No entanto, a Tríplice Aliança baseava-se em tratados, ou seja, acordos solenes, formais, que impunham de forma explícita obrigações a serem cumpridas pelas partes que estabeleceram esse contrato. Já a Tríplice Entente era um bloco em que a sua estrutura assentava num tratado entre duas das partes envolvidas - a França e a Rússia, desde 1892 - mas em que a terceira Potência envolvida - o Reino Unido - estava ligada às outras duas apenas por uma Entente, isto é, um acordo informal com a França desde 1904 e com a Rússia desde 1907, mas que foi ganhando consistência à medida que era necessário definir posições nas crises que surgiram no início do século XX. Apesar do secretismo de grande parte dos acordos ou tratados firmados, eles não eram inteiramente desconhecidos das potências adversárias. 

A situação na Europa anterior à Primeira Guerra Mundial evidenciava vários focos de tensão que poderiam ser origem de um conflito entre as Grandes Potências. A Áustria-Hungria e a Rússia defendiam interesses por vezes antagónicos, nos Balcãs. Embora não o declarasse abertamente, a França mantinha um sentimento de revanche da derrota na Guerra Franco-Prussiana (1870-1871) e o objetivo de recuperar os territórios da Alsácia-Lorena. Após a Aliança Franco-Russa (1892), a Alemanha sentiu-se cercada, pois sabia que, em caso de conflito, teria de lutar simultaneamente em duas frentes: contra a França e contra a Rússia. Além disso, as tentativas de entendimento entre a Alemanha e o Reino-Unido também não deram resultado. O Reino Unido pretendia, a todo o custo, manter a supremacia naval. A Itália, embora aliada da Áustria-Hungria na Tríplice Aliança, continuava a ambicionar a recuperação dos territórios de cultura e língua italiana ainda dominados pelos austríacos, os chamados territórios irredentos.

As crises entre estas Potências sucederam-se e, com alguma surpresa por parte da Alemanha, tiveram como consequência o enfraquecimento da Tríplice Aliança e o reforço da Tríplice Entente. A crise de Agadir (1911) foi o último desses conflitos diplomáticos que ameaçou lançar as potências num conflito. A Rússia recuperava da sua derrota na Guerra Russo-Japonesa (1904-1905) e a França procurava soluções para contrabalançar a crescente fonte de recrutamento da Alemanha. É neste Império que alguns dos principais governantes assumiram que, a haver guerra, quanto mais cedo melhor porque em cada ano que passava os seus inimigos estavam mais fortes. Foi neste ambiente que se desenvolveram os planos de guerra utilizados no início da Primeira Guerra Mundial.


BIBLIOGRAFIA citada:

CARRIAS, Eugène, La Pensée Militaire Allemande, © 2010, Ed. Economica, Paris, 2010, ISBN 978-2-7178-5810-5.

MARRIL, Jean-Marc, «L’offensive à outrance: une doctrine unanimemente partagée par les grande puissances militaires en 1914» in Revue historique des armées, 274|2014, (https://journals.openedition.org/rha/7962).

MARTELO, David, Origens da Grande Guerra, © 2013, Edições Sílabo, Portugal, 2013, 339 p., ISBN 978-972-618-705-9.

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