quinta-feira, 16 de abril de 2020

A anexação da Bósnia-Herzegovina

Situação Internacional

Em 1907, a Europa estava dividida em dois blocos: a Tríplice Entente, formada pela França, Rússia e Reino Unido, e a Tríplice Aliança, formada pela Alemanha, Áustria-Hungria e Itália. Existiam outros acordos e alianças, como os Acordos do Mediterrâneo, a Aliança entre a Roménia e a Áustria-Hungria ou a aliança entre o Reino Unido e o Japão, mas era entre aqueles dois blocos que existiam focos de tensão perigosos para a paz na Europa e no Mundo. Existia um grande antagonismo entre a França e a Alemanha, tanto na Europa por causa da ocupação da Alsácia-Lorena na Guerra Franco-Prussiana de 1970-1971, como fora dela, por questões coloniais de que o exemplo mais recente era o caso de Marrocos (1905-1906). A rivalidade naval entre o Reino Unido e a Alemanha transformou-se numa corrida aos armamentos. A Áustria-Hungria e a Rússia procuravam atenuar os efeitos da sua rivalidade nos Balcãs, para o que estabeleceram alguns acordos. A Itália fazia parte da Tríplice Aliança, mas mostrava mais vontade de cooperar com a França do que com a Áustria-Hungria, com quem tinha fronteira e de quem ambicionava recuperar os territórios irredentos, Trentino e Trieste, entre outros.

Ao acompanhar a formação das alianças e acordos (ententes) encontramos nos seus textos um carácter defensivo e conciliatório. A Aliança Dual (7 Outubro 1879), tratado de aliança entre a Alemanha e a Áustria-Hungria, era nitidamente uma aliança defensiva. O tratado da Tríplice Aliança (20 Maio 1872) não alterou esse carácter. De forma idêntica, a aliança entre a França e a Rússia (18 Agosto 1892) foi firmada tendo como intenção a defesa destas Potências frente à Alemanha e à Áustria-Hungria. Quando o Reino Unido estabeleceu acordos com a França e a Rússia, em 1904 e 1907, o objectivo destas diligências diplomáticas era o de resolver questões de carácter colonial. No entanto, como vimos quando se tratou a questão da Primeira Crise de Marrocos, uma das consequências desta crise foi a de alterar o âmbito das relações entre a França e o Reino Unido, alargando-as ao nível dos respectivos estados-maiores, estudando a possibilidade de uma intervenção britânica em apoio da França. No caso do acordo com a Rússia não se chegou tão longe como aconteceu com a França. Os laços que uniam os membros da Tríplice Entente não eram tão fortes como os da Tríplice Aliança e, muito especialmente, da Aliança Dual.

São estes os actores e as ligações que os unem e opõem num contexto que ultrapassa o do Continente europeu. As chamadas Potências Centrais – Alemanha, Áustria-Hungria e Itália – que formavam a Tríplice Aliança encontravam-se perante um outro bloco, a Tríplice Entente, em que os seus membros se situam a ocidente e a oriente daquele. Convenhamos que é difícil negar aos Alemães, que tinham fronteira com a França e com a Rússia, alguma razão quando se referem ao sentimento de cerco. Patrícia Daehnhardt descreve esta ideia de cerco referindo a obra de Herfried Münkler, Der Grosse Krieg. Die Welt 1914–1918: «Quanto às razões que levaram à eclosão da Guerra, Münkler refere uma «estratégia de duplo cerco»: por um lado, o cerco da monarquia do Danúbio pela Liga dos Balcãs, sob protecção russa e por outro, o cerco da Alemanha pela França e pela Rússia, com a Inglaterra tendencialmente do lado franco-russo. Por fim, em 1914 «quando a guerra é decidida, o sentimento inevitável é de enorme alívio. […] quando a Alemanha declarou guerra à França, segundo o príncipe herdeiro, foi como um término bem-vindo à tensão sempre crescente, um fim ao pesadelo do cerco.» Perante esta ameaça de cerco, a Alemanha utilizou todos os incidentes para tentar criar a desunião entre os membros da Tríplice Entente.

Em 1907, quando os alinhamentos entre as Grandes Potências europeias ficaram definidos, é necessário contar com outras duas Grandes Potências não europeias: Estados Unidos da América e Japão. A América Latina encontrava-se “protegida” desde 1823 pela Doutrina Monroe, lançada por James Monroe, presidente dos Estados Unidos da América entre 1817 e 1825, que na mensagem dirigida ao Congresso, a 2 de Dezembro daquele ano, afirmava: «Julgarmos propícia esta ocasião para afirmar, como um princípio que afecta os direitos e interesses dos Estados Unidos, que os continentes americanos, em virtude da condição livre e independente que adquiriram e conservam, não podem mais ser considerados, no futuro, como susceptíveis de colonização por nenhuma potência europeia.» [Texto em inglês em https://avalon.law.yale.edu/19th_century/monroe.asp]. Na Ásia, a China estava dividida em zonas de influência das Grandes Potências e o Sul daquele grande continente estava em grande parte nas mãos dos Britânicos e também, em muito menor grau, dos Franceses. O continente africano estava praticamente todo ocupado. Os ganhos territoriais quase terminaram e as alterações ao status quo teriam de ser confirmadas pelo conjunto das Grandes Potências. Aliás, qualquer alteração dificilmente poderia ser posta em prática sem interferência nos interesses de outra Potência.

A anexação da Bósnia-Herzegovina

O Tratado de Berlim de 1878, que colocou um fim formal na Guerra Russo-Turca de 1877-1878, estabelecia no seu artigo 25º que «as Províncias da Bósnia e Herzegovina serão ocupadas e administradas pela Áustria-Hungria.» Isto significava que aquele território continuava sob soberania do Império Otomano, mas era administrado pelo Governo da Áustria-Hungria. Apesar disso, o Governo austro-húngaro administrou a área como se tratasse de território anexado e tomou medidas de longo prazo. Foi durante a ocupação austro-húngara que as duas províncias otomanas foram unidas numa única entidade administrativa, a Bósnia-Herzegovina. [Texto do Tratado de Berlim de 1878 em https://www.jstor.org/stable/2212670?read-now=1&refreqid=excelsior%3A3d3a8a7b4069e3c93da6ea2222276c6b&seq=1#page_scan_tab_contents]

A ocupação da Bósnia e da Herzegovina seria a compensação atribuída à Áustria-Hungria pelos ganhos obtidos pela Rússia no sul da Bessarábia e pela criação de uma Bulgária independente sob grande influência russa. Contudo, na Áustria-Hungria, os liberais austríacos e muitos húngaros opunham-se a esta ocupação porque não desejavam que o Império englobasse mais eslavos, mas esta questão tinha de ser examinada tendo em conta as ambições de outros Estados. Se a Monarquia dos Habsburgo não assumisse o controlo da Bósnia e da Herzegovina, estas províncias acabariam por cair em poder da Sérvia que, assim, se tornaria uma Potência maior e uma forte atracção para os Eslavos do sul do Império Austro-Húngaro.

A Áustria-Hungria e a Rússia tinham estabelecido, em 1897 e em 1903, acordos sobre a manutenção do satus quo nos Balcãs e nesses acordos era admitida a anexação da Bósnia-Herzegovina, mas esta deveria ser sujeita a «especial escrutínio no tempo e lugares próprios.» No entanto, verificaram-se importantes mudanças na Sérvia. Alexandre Obrenović (14 Agosto 1876 – 11 Junho 1903) reinou desde 1889 até à sua morte como Alexandre I da Sérvia e manteve um bom relacionamento com o Império Austro-Húngaro. Alexandre I foi assassinado e sucedeu-lhe o rei Pedro Karageorgovich que, ao contrário do seu antecessor, era pró-russo. As relações com a Áustria-Hungria deterioraram-se, chegando a desencadear-se uma guerra comercial que ficou conhecida como “Guerra dos Porcos”. Os Sérvios estabeleceram novos laços com a França e a Rússia. A possibilidade de a Sérvia desencadear acções tendentes a destabilizar as nações eslavas do sul do Império alarmou o Governo austro-húngaro. Algumas personalidades da Monarquia Dual, entre elas o Chefe do Estado-Maior General Conrad von Hötzendorff, defenderam a ideia de uma guerra preventiva contra a Sérvia.

O status quo nos Balcãs sofreu ainda as consequências de um outro acontecimento: a Revolução dos Jovens Turcos, em Julho de 1908. O objectivo dos revoltosos era o de restaurar a Constituição de 1876 no Império Otomano e iniciar um conjunto de reformas. Os Jovens Turcos pretendiam, entre outros objectivos territoriais, restabelecer o controlo sobre a Bósnia e a Herzegovina. O Império Otomano estava enfraquecido, mas a tentativa de recuperar o controlo sobre os territórios ocupados alertou e causou receios no Governo austro-húngaro. Neste Império, o ministro dos Negócios Estrangeiros Alois Lexa von Aehrenthal (1854-1912) encontrava-se em funções desde Outubro de 1906. Na Rússia, desde Maio de 2006 que esse cargo era ocupado por Alexander Petrovich Izvolsky (1856-1919). Aerenthal queria aproveitar as circunstâncias para anexar a Bósnia e a Herzegovina e, desta forma, colocar um fim nas aspirações sérvias. Izvolsky queria igualmente aproveitar as circunstâncias para alterar o status quo relativo aos Estreitos, abrindo-os aos navios de guerra russos. Aerenthal e Izvolsky reuniram-se em Buchlau (na actual República Checa), em Setembro de 1908. Neste encontro, os dois ministros chegaram a um acordo: «a Áustria prometia não se opor aos planos da Rússia relativamente aos Estreitos, ficando estabelecido que Constantinopla era deixada para a Turquia; a Rússia concordou com a anexação da Bósnia.»


Por decreto de 5 de Outubro de 1908, o Governo da Áustria-Hungria anunciou a anexação da Bósnia-Herzegovina. Este anúncio teve de imediato a reacção negativa da Sérvia. A população dos territórios anexados era em grande parte de origem sérvia e este Reino aguardava que a ocupação e administração austro-húngara chegasse a um fim para então poder anexar aquelas províncias. Vendo os seus planos arruinados, a Sérvia exigiu que lhe fosse atribuída uma parte das províncias - uma faixa de território que lhe permitiria chegar ao Mar Adriático - e o seu exército manteve-se em estado de prontidão para a guerra que parecia avizinhar-se. Aerenthal recusou negociar qualquer compensação à Sérvia já que o principal objectivo era o de dar um golpe mortal na agitação dos povos eslavos, agitação que tinha origem naquele país. «Entre os súbditos eslavos dos Habsburgo, os mais inquietos eram os Eslavos do Sul cuja contiguidade com a Sérvia era a causa de aquele pequeno país assumir uma invulgar importância aos olhos do Governo austro-húngaro. […] Pašić, o líder radical e personalidade dominante da política da Sérvia, que era simultaneamente primeiro-ministro e ministro dos Negócios Estrangeiros, em 1904 falou do papel da Sérvia entre os Eslavos do Sul como comparável ao do Piemonte na formação da Itália.» Este conceito fez crescer no Império Austro-Húngaro uma facção que defendia a anexação da própria Sérvia.

Quando a anexação da Bósnia-Herzegovina foi anunciada, Izvolsky encontrava-se a caminho de Paris a fim de obter o consentimento das Grandes Potências para os planos russos e austro-húngaros. Izvolsky foi surpreendido pelo anúncio da anexação e, por outro lado, deparou com a oposição do Reino Unido e da França à abertura dos Estreitos aos navios de guerra russos. A Áustria-Hungria tinha violado, unilateralmente, o Tratado de Berlim de 1878. Perante esta situação, o ministro russo retirou o seu apoio à anexação da Bósnia-Herzegovina e passou a apoiar a posição da Sérvia. Izvolsky defendeu que tinha concordado com o processo, mas tal não dispensava a consulta das Potências, sendo então necessário convocar uma conferência internacional. Aerenthal informou que só aceitaria a conferência se, em negociações prévias, fosse prevista a aprovação da anexação da Bósnia e da Herzegovina, isto é, se a anexação fosse considerada um fait accompli, o que significa, na terminologia das Relações Internacionais, «um acto unilateral, por um estado ou grupo de estados que rápida e dramaticamente altera o status quo. Normalmente engloba o elemento surpresa e tem o efeito de pôr fim a um impasse diplomático.» A situação tornou-se tensa entre a Rússia e a Áustria-Hungria e Conrad von Hötzendorff defendeu que esta era a oportunidade de assumir uma posição ofensiva contra a Sérvia com a finalidade de conter a agitação dos eslavos do sul do Império, mas não teve o apoio de Aerenthal. A Alemanha não desejava envolver-se num conflito nos Balcãs em consequência da sua aliança com a Áustria-Hungria. A Rússia estava na disposição de apoiar a Sérvia caso esta fosse atacada pela Áustria-Hungria e, de acordo com o Artigo 1º da Aliança Dual, se a Áustria-Hungria fosse atacada pela Rússia, «as Altas Partes Contratantes são obrigadas a prestar ajuda mútua com todo o potencial de guerra de seus impérios e de acordo com o objectivo de concluir a paz em conjunto e por mútuo acordo.» [Texto do tratado, em língua inglesa, em https://wwi.lib.byu.edu/index.php/The_Dual_Alliance_Between_Austria-Hungary_and_Germany].

Izvolsky não conseguiu garantir por parte da França e do Reino Unido um apoio idêntico ao que a Áustria-Hungria obtinha por parte da Alemanha. A França era obrigada a agir com muito cuidado atendendo a problemas com a Alemanha em Marrocos, devido ao “Incidente de Casablanca” a 25 de Setembro de 1908. Além disso, a França tinha dúvidas sobre a política russa já que Izvolsky, na reunião com Aerenthal em Buchlau, tinha chegado a acordo sem o conhecimento dos franceses e, além disso, a situação não constituía uma ameaça para os interesses vitais da Rússia. A França não estava na disposição de ser arrastada para uma guerra nos Balcãs e, sem o apoio francês, a Rússia não tinha condições para enfrentar a Áustria-Hungria e a Alemanha. O Reino Unido não prometeu mais do que apoio diplomático.

Foram então iniciadas diligências diplomáticas no sentido de resolver a crise que tinha sido iniciada em consequência da anexação da Bósnia-Herzegovina. Em Março de 1909, a Alemanha pressionou os Russos para retirarem o seu apoio à Sérvia. As negociações com a Turquia levaram o Governo otomano a aceitar a anexação da Bósnia-Herzegovina em troca de uma compensação monetária no valor de 2.400.000 £. Através de uma troca de notas, as Potências aprovaram a anexação da Bósnia-Herzegovina. A Sérvia teve de declarar que aceitava a resolução das Potências e comprometeu-se a reatar as relações normais com a Áustria-Hungria o que implicava abandonar a propaganda e a agitação entre os Eslavos do Sul, o que nunca foi cumprido.

As Potências da Entente tiraram lições destes acontecimentos. Para os franceses ficou demonstrado que era necessário dar mais atenção às suas forças armadas a fim de restabelecer o equilíbrio que tinha sido deslocado a favor da Tríplice Aliança, ou melhor, da Aliança Dual. A Rússia, reconhecendo a sua incapacidade para resistir à Alemanha e desapontada com a falta de apoio por parte da França e do Reino Unido, acelerou a reorganização e expansão do seu exército. Os Britânicos expandiram o seu programa de construção naval por forma a manter o critério Two Power Standard. Acelerou-se a corrida aos armamentos. Do lado da Tríplice Aliança, os partidários da guerra contra a Sérvia ganharam força. Conrad von Hötzendorff, o Chefe do estado Maior General da Áustria-Hungria, tentou influenciar o Imperador contra a Sérvia ou, como ele afirmou, «contra aquele ninho de vespas.» A Alemanha demonstrou à Rússia a sua fraqueza e Helmuth von Moltke, o chefe do Estado-Maior General alemão, deixou claro ao chefe do Estado-Maior General russo que «no momento em que a Rússia mobilizar, a Alemanha também mobilizará e mobilizará inquestionavelmente todo o seu exército.»

Os interesses italianos nos Balcãs foram ignorados. Por causa disso, a Itália concordou em apoiar a Rússia nas suas ambições sobre os Estreitos enquanto a Rússia apoiaria a Itália nas suas ambições sobre Tripoli. Na Sérvia, a situação provocou um exacerbamento do nacionalismo. Após a anexação da Bósnia-Herzegovina, ainda em 1908, foi criado um grupo nacionalista chamado Narodna Odbrana (A Defesa do Povo) que durante as Guerras dos Balcãs (1912-1913) cometeram diversos crimes sobre a população não sérvia em territórios conquistados. Esta veio a ser uma organização de fachada para outra chamada “Unificação ou Morte”, também conhecida como “Mão Negra” sobre a qual caiu a responsabilidade pelo planeamento e execução do assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando da Áustria em Julho de 1914.

A crise provocada pela anexação da Bósnia-Herzegovina fortaleceu os laços entre a Alemanha e a Áustria-Hungria. O apoio dado pela Alemanha foi decisivo para o desfecho desta crise, ao contrário do que se verificou do lado da Entente. Ao contrário de Bismarck, que não desejava ver-se envolvido numa guerra por causa da política austro-húngara nos Balcãs - «Para nós, as questões dos Balcãs não podem em caso algum ser motivo para uma guerra.» – o actual chanceler alemão, Bernhard von Bülow (1849-1929), no Governo entre 16 de Outubro de 1900 e 16 de Julho de 1909, decidiu que a Alemanha seria parte activa na questão, mas deixou que a Áustria liderasse os acontecimentos. De qualquer forma, os respectivos Estados-Maiores, sob a liderança de Conrad von Hötzendorff e de Helmuth von Moltke, estudaram a possibilidade de desenvolvimento de operações militares para o caso de o conflito diplomático evoluir no sentido de um conflito militar.

No final, a anexação da Bósnia-Herzegovina pela Áustria-Hungria foi aceite como um fait accompli, mas as pretensões da Rússia relativamente aos Estreitos foram negadas pelas mesmas Potências que aceitaram a anexação.

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