segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

O Sudão Anglo-Egípcio

Os territórios que conhecemos hoje por República do Sudão, com capital em Cartum, República do Sudão do Sul, com capital em Juba, e os territórios mais a ocidente, até ao hinterland do Senegal e englobando o curso superior do Rio Níger, onde hoje se situam as Repúblicas do Chade, do Mali e do Níger, eram conhecidos desde a Idade Média como “Bilad as-Sudan”, expressão árabe que significa “País dos Negros”. É um território que liga as costas ocidental e oriental de África nas regiões a sul do Saara. Constitui o limite Sul do mundo árabe em África e liga-se com o mundo africano, muitas vezes referido como “África Negra”. É uma zona de forte influência islâmica.

Em 1882, quando os Britânicos passaram a controlar o Egipto, as regiões que mencionámos estavam divididas em três partes: o Sudão Ocidental, constituído pelo hinterland do Senegal e os territórios do curso superior do Níger, o Sudão Central, que englobava as regiões do Chade, do Mali e Níger, e o Sudão Egípcio, este constituído pela generalidade dos territórios das actuais repúblicas do Sudão. Chamava-se Sudão Egípcio porque parte importante deste território tinha sido conquistada pelos Egípcios entre 1820 e 1822. Entre o Sul do Egipto e o Norte do Sudão não existia, na altura, uma fronteira bem definida. A região que, ao longo do vale do Nilo, foi partilhada pelo Egipto e o Sudão, que constituía a zona de transição entre a civilização egípcia e as civilizações da chamada África Negra, era conhecida como Núbia. Após a intervenção britânica, este último Sudão Egípcio passou a ser conhecido como “Sudão Anglo-Egípcio”e é sobre ele que nos vamos agora debruçar referindo-o apenas como “Sudão”.

Localização do Sudão Anglo-Egípcio
[Wikipédia]

O Sul e o Norte do Sudão apresentavam diferenças significativas. A Norte, a população falava principalmente a língua árabe, estava islamizada e mantinha, através do Egipto, laços com o mundo árabe. Para o Sul, onde as religiões predominantes se revestiam de um carácter animista, onde a influência árabe não se tinha feito sentir de forma permanente e duradoura, ficava um território que se integrava na “África Negra”. A principal cidade destas regiões, a capital do Sudão Egípcio, era Cartum, no Norte, situada na confluência entre o Nilo Branco e o Nilo Azul. Para Sul estendia-se a parte central do Sudão, até Fachoda. Nesta região havia chuva suficiente para permitir a agricultura mais afastada dos principais cursos de água e a criação de gado. Para Sul de Fachoda, o Sudão Meridional diferia muito do resto do território. Os afluentes do Nilo constituíam uma barreira natural e formavam uma região de pântanos, por vezes impenetráveis, e existiam diferenças significativas na composição étnica e nos aspectos socioculturais.

O Egipto estava limitado a Norte pelo Mediterrâneo e a Este e a Oeste por desertos. Tendo surgido um quediva (vice-rei) com tendências expansionistas, como foi o caso de Mehemet Ali (1805-1848), é natural que a expansão se verificasse em direcção a Sul, isto é, para o Sudão. Essa expansão começou em Julho de 1820. No espaço de um ano, os territórios do norte e centro do Sudão foram submetidos ao Egipto o que então significava que pertenciam ao Império Otomano. Entre 1839 e 1843, foi conquistado o Sul do Sudão. O que é que tinha levado o Egipto a empreender esta tarefa de conquista? De forma clara, Mehemet Ali afirmou que pretendia obter uma fonte de escravos mas também estava presente a intenção de obter as minas do ouro sudanês.

O quediva do Egito Muhammad Sa'id Paxá (1854-1863) entendeu que a ocupação do Sudão não apresentava vantagens significativas e, com a pressão europeia para abolir a captura de escravos, publicou um decreto a proibir esta prática. No entanto, o seu sucessor, Isma'il Paxá (1863-1979), iniciou uma nova expansão do Egipto e retomou a captura de escravos. Esta política, numa época em que na Europa predominava a ideia da luta contra o tráfico de escravos, não teve os apoios que desejava. Por outro lado, a resistência que encontrou em algumas regiões do Sudão foi forte e a expedição não foi bem sucedida. Para manter a região pacificada, acabou por ter de aceitar um traficante de escravos como governador de uma das províncias. Nesta altura, também foi nomeado governador de uma província no sul do Sudão, o explorador britânico Samuel White Baker (1821-1893) que desempenhou essas funções entre 1869 e 1873. Após ter terminado o seu mandato, Baker foi substituído pelo Coronel Charles George Gordon (1833-1885) que ocupou o cargo até 1877. Charles George Gordon foi um oficial do Exército Britânico que prestou relevantes serviços ao Império. Por convite do quediva do Egipto, Gordon foi governador da província equatorial do Sudão, de 1874 a 1877.

Sudão Anglo-Egípcio na sua máxima extensão
[Wikipédia]
Neste último ano, Gordon assumiu o cargo de governador-geral do Sudão no qual se manteve até 1879. Durante o tempo em que desempenhou estas funções, desenvolveu grandes esforços para pôr termo ao tráfico de escravos. Em 1880, o quediva Tewfik Paxá anunciou que este tráfico tinha terminado. Nesta luta contra os traficantes, Gordon arranjou muitos inimigos pois a supressão do tráfico causou uma grande perturbação na economia do Sudão. A política seguida por Gordon teve outras consequências. Num país islâmico, a chegada de numerosos Cristãos causava algum receio à população. Quando Gordon abandonou o Sudão, em 1879, a população estava ressentida não só pela chegada de numerosos Cristãos mas também porque o país estava ser explorado pelos antigos governadores turcos (Otomanos). Gordon fora substituído por um governador egípcio.

A 29 de Junho de 1881, na ilha de Aba, situada no Nilo Branco, Muhammad Ahmad declarou que era o Mahdi, o Esperado, o Salvador. A população, islamizada no ramo sunita do Islão, acreditava na vinda de um salvador enviado por Deus que chegaria antes do fim dos tempos para combater as forças do mal e trazer a justiça à Terra. Muhammad Ahmad nasceu em 1884 no Norte do Sudão. Interessado pelos estudos religiosos, aos 17 anos aderiu a uma confraria místico-religiosa. Ganhou reputação de pessoa devota e humilde. Acompanhou a sua família quando esta se mudou para a ilha de Aba, no Nilo Branco, ao sul de Cartum. Enquanto jovem, viajou muito pelo país a fim de espalhar a mensagem da renúncia ao mundo e da renovação espiritual mas também pregava que era necessário ajudar os pobres e castigar os que dominavam. O Mahdi fez numerosos adeptos nos vários sectores da população, não apenas os que tinham preocupações religiosas mas também os traficantes de escravos prejudicados pelo abolicionismo e os camponeses esmagados pelos impostos egípcios.

Sem qualquer treino militar, Ahmad conduziu o seu exército de seguidores devotos numa sucessão de batalhas vitoriosas e cercos bem sucedidos. A 3/5 de Novembro de 1883, em El Obeid (Al-Ubayyid), no centro do Sudão, as forças de Ahmad derrotaram uma força expedicionária egípcia. As tropas egípcias estavam a ser comandadas pelo Coronel William Hicks (1830-1883), militar britânico ao serviço do quediva egípcio. Simultaneamente, Osman Digna (1840-1926), seguidor de Muhammad Ahmad e no comando de uma outra força, dirigiu-se em direção aos portos egípcios do Mar Vermelho e, a 4 de Fevereiro de 1884, em El Teb, perto do porto de Suakim, na costa sudanesa daquele mar, com cerca de 1.000 guerreiros derrotou uma força anglo-egípcia de efectivo muito superior. Alguns dias mais tarde, a 29 de Fevereiro, a intervenção de uma força britânica vinda da Índia inverteu a situação com uma vitória sobre o exército “mahdista”. Entretanto, os Britânicos tinham decidido evacuar o Sudão e obrigaram os Egípcios a fazê-lo.

No dia 18 de Janeiro de 1884, Charles George Gordon regressou ao Sudão, a Cartum, para supervisionar a evacuação das forças egípcias. Pouco depois, a 13 de Março, as forças de Muhammad Ahmad puseram cerco à capital sudanesa onde se encontrava Gordon e uma pequena guarnição anglo-egípcia. O cerco prolongou-se durante quase um ano. Os Britânicos demoraram demasiado tempo a decidir enviar uma força para libertar os sitiados no Sudão. Finalmente, por pressão da opinião pública, em Outubro desse ano partiu de uma expedição de Wadi Halfa, no norte do Sudão, junto à actual fronteira, sob o comando do General Woseley. Esta expedição partiu demasiado tarde pois, no dia 26 de Janeiro de 1885, as tropas mahdistas entraram na cidade e massacraram toda a guarnição. Charles Gordon encontrava-se entre os militares que ali foram mortos. Wolseley conseguiu entrar na cidade dois dias mais tarde mas recebeu ordens para se retirar.

Muhammad Ahmad adoeceu e morreu a 21 de Junho de 1885. O seu sucessor, o Califa Abdullah, prosseguiu a sua obra e, em breve, tinha completado a conquista de todo o Sudão. Depois da queda de Cartum, os mahdistas conquistaram territórios mais a sul e a leste. Entraram em conflito com a Abissínia. A 9 e 10 de Março de 1889, os exércitos do Sudão mahdista e do Império Etíope (também chamado Abissínia) defrontaram-se na Batalha de Gallabat. Os Sudaneses obtiveram uma vitória à custa de baixas demasiado pesadas. O número de mortos de cada lado aproximou-se dos 15.000. As forças militares de Abdullah tinham ficado fragilizadas e, para além das preocupações com o Egito, de onde eram enviadas unidades militares equipadas, treinadas e frequentemente comandadas pelos Britânicos que tinham iniciado uma reconquista metódica do território, Abdullah tinha também de se preocupar com outras forças que exerciam pressão sobre o Nilo superior: eram os Belgas a partir do Estado Livre do Congo, os Franceses que ameaçavam a região sudoeste do Sudão ou os Italianos com base na Eritreia. Este avanço das outras potências europeias em direção ao Vale do Nilo foi o principal motivo pelo qual os Britânicos tinham decidido a reconquista do Sudão.

Horatio Herbert Kitchener era, desde Abril de 1892, o comandante do Exército Egípcio. Sob o seu comando, um exército anglo-egípcio derrotou as forças mahadistas e reconquistou o Sudão. A campanha para a reconquista do Sudão começou a 16 de Março de 1896 e terminou com a ocupação de Cartum a 4 de Setembro de 1898. A campanha foi realizada na sua maior parte ao longo do Rio Nilo mas também ao longo do Rio Atbara, afluente do Nilo cujo leito estava seco quando foi travada a Batalha de Atbara a 8 de Abril de 1898. Ao longo da campanha, Kitchener foi recebendo reforços, em tropas, armamento, munições e equipamentos diversos, entre eles várias canhoneiras que, a partir do Rio Nilo, apoiavam as forças em terra. Na costa do Sudão, no Mar Vermelho, a posse de Suakim pelos Britânicos permitiu reabrir a rota das caravanas e, por essa via, acumular abastecimentos em Berber, perto da confluência do Rio Atbara com o Rio Nilo. O confronto final com as forças mahadistas deu-se na Batalha de Omdurman, a 2 de Setembro de 1898. Omdurman, na margem esquerda do Nilo, era uma aldeia onde se situava o quartel-general das forças mahdistas. Na margem direita, imediatamente a sul da confluência do Nilo Azul com o Nilo Branco, à vista de Omdurman, situava-se Cartum, em ruínas desde o cerco de 1885.

Reconquista do Sudão 1896-1898
[mfvgm]

Os recursos empregues na campanha de reconquista do Sudão foram avultados. Para além dos recursos humanos e de todo o equipamento, armamento, munições e abastecimentos, Kitchener fez construir uma linha de caminho de ferro de Wadi Halfa a Abu Hamed. Do Cairo saía uma linha que não avançava mais de 560 Km. Daí para a frente era necessário utilizar as embarcações no Nilo até à Primeira Catarata. Aí, sendo necessário contornar este obstáculo, era utilizada uma via férrea numa extensão de 10 Km para regressar então ao rio e embarcar por mais 335 Km até à Segunda Catarata, hoje submergida pelo Lago Nasser. Um pouco a norte da Segunda Catarata fica Wadi Halfa de onde partia uma linha férrea até Akasha. De Wadi Halfa até Abu Hamed foi construída uma linha férrea com mais de 300 Km. A construção foi iniciada a 1 de Janeiro de 1897 e terminou a 31 de Outubro desse ano. Esta linha férrea foi essencial para o apoio logístico do exército anglo-egípcio pois o Nilo não era navegável entre Merowe e Abu Hamed, numa distância superior a 100 Km. Além de encurtar muito o percurso até Abu Hamed, permitia fugir a todas as operações de embarque e desembarque para contornar as 3ª e 4ª cataratas e as partes não navegáveis do rio.

Os recursos utilizados variaram para ambos os oponentes ao longo da campanha. Enquanto as tropas mahdistas foram perdendo força, Kitchener conseguiu reforçar o seu exército com recursos materiais e humanos. Os recursos humanos empenhados na Batalha de Omdurman, que representam uma parte importante de ambas as forças, foram avultados, especialmente se considerarmos o esforço que era necessário para fazer chegar os abastecimentos às tropas. O exército anglo-egípcio era formado por 8.200 Britânicos e 17.600 Egípcios e Sudaneses, uma força nitidamente inferior, em número, ao exército mahdista. Estes era constituído por 51.415 homens, dos quais 5.498 estavam montados. No entanto, estes números não podem se confrontados sem conhecermos o armamento disponível, a sua organização e a preparação para enfrentar o adversário. As forças mahdistas dispunham de 4 bocas de fogo de artilharia e uma metralhadora. O exército anglo-egípcio dispunha de 44 bocas de fogo de artilharia de campanha e mais 36 montadas nas canhoneiras que, a partir do Nilo proporcionaram apoio de fogos; dispunha também de 20 metralhadoras Maxim em terra e mais 24 a serem utilizadas a partir das embarcações. Para além desta disparidade de armas de artilharia e metralhadoras, deve-se ter em conta a boa organização, enquadramento, preparação e equipamento do exército anglo-egípcio. No exército mahdista existiam menos de 20.000 espingardas (FEATHERSTONE, 61-63).

A Batalha de Omdurman foi a primeira demonstração real do poder de fogo proporcionado pelas metralhadoras, factor determinante durante a Primeira Guerra Mundial (R. E. DUPUY & T. N. DUPUY, 848). A principal consequência desta vitória anglo-egípcia foi a submissão do território sudanês à autoridade egípcia e a extinção do Mahdismo no Sudão. Durante o bombardeamento de Omdurman, o túmulo do Mahdi foi destruído. Os Britânicos assumiram o controlo do Nilo e iriam defender vigorosamente esse status. Tinha início o chamado Anglo-Egyptian Condominium que iria durar até 1955. Foi um condomínio não isento de percalços e o primeiro deles, em Fachoda, para sul de Cartum, no Nilo Branco, pôs frente a frente Britânicos e Franceses.


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