A Entente
Cordiale, isto é, o acordo estabelecido entre o Reino Unido e a
França em 8 de Abril de 1904, foi possível porque ambas as
potências entenderam ser do seu interesse resolver as questões
coloniais em que se chocavam. Assim, para compreendermos o caminho
percorrido até ao estabelecimento desta fórmula de cooperação
entre aquelas potências, é necessário abordar os seus diferendos
coloniais. O espaço geográfico onde esses diferendos surgiram foi
África. Para não tratarmos uma questão tão complexa e tão vasta
num único artigo, decidi sistematizar o tema de acordo com a
geografia. Comecemos pelo Egipto.
No
ano 639, os Árabes apoderaram-se do Egipto. Em Misr estabeleceram a
capital e a sua base para a conquista do Norte de África. Em 1517, o
Egipto foi conquistado pelos Turcos Otomanos mas, apesar disso, o
governo do Egipto continuou nas mãos dos Mamelucos. Com um governo
que dispunha de grande independência, o Egipto era, no entanto,
parte do Império Otomano. Foi esta situação que os Franceses
encontraram quando se realizou a Campanha do Egipto sob o comando do
General Bonaparte em 1798. Três anos mais tarde, as tropas francesas
foram expulsas por um exército turco e uma força expedicionária
britânica. Se os militares franceses – e também os militares
britânicos – saíram do Egipto após estabelecida a paz, cidadãos
e empresas de ambos os países, especialmente franceses, permaneceram
e ali desenvolveram os seus interesses. O projecto de construção do
Canal de Suez foi um projecto francês.
Localização
do Egipto. Imagem disponível em Wikimedia
Commons.
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A
ligação do Mediterrâneo ao Mar Vermelho por um canal não era uma
ideia nova. Na Antiguidade foi escavado um canal que ligava o Rio
Nilo ao Mar Vermelho. Esse canal, que ao longo dos séculos sofreu
muitas alterações, só foi abandonado no século VIII quando o
Egipto se encontrava sob domínio árabe. No século XVI, a ideia da
construção do canal foi retomada pelos Venezianos que sentiam os
efeitos da concorrência dos Portugueses após a descoberta do
caminho marítimo para a Índia. O projecto não foi realizado mas a
ideia voltou a ser levantada pelos Franceses quando se realizou a
Campanha do Egipto (1798-1801). Mais tarde, este projecto mereceu a
atenção de Méhémet-Ali, wali do Egipto entre
1805 e 1848. Em 1846 foi criada uma sociedade para efectuar os
estudos necessários à construção do canal. O Canal de Suez foi
construído entre 1859 e 1869, pela Compagnie universelle du
canal maritime de Suez de Ferdinand de Lesseps, de acordo
com os planos aprovados pela “Comissão Internacional para a
perfuração do Istmo de Suez”.
Os Britânicos não concordaram com a construção do canal pois este, sob grande influência francesa, seria parte importante da rota entre a Grã-Bretanha e a Índia. A rota do Canal de Suez permitia encurtar o percurso em mais de 8.000 Km. Esta questão provocou sérios atritos nas relações anglo-francesas. Os Britânicos utilizaram toda a sua influência para interromper as obras mas, graças ao apoio de Napoleão III, o canal foi terminado em 1867 embora a sua inauguração só fosse feita em 17 de Novembro de 1869.
Após
a abertura do Canal de Suez, a companhia que fazia a sua gestão
atravessou dificuldades financeiras. Como consequência, várias
obras do canal só foram concluídas em 1871. O tráfego no canal foi
mais baixo que o esperado nos primeiros dois anos. As companhias de
navegação demoraram a alterar as suas rotas. Por outro lado, grande
parte da navegação daquela época ainda era feita por veleiros.
Ora, a travessia do canal só podia ser feita por navios a vapor
devido ao problema dos ventos. Também foi necessário ajustar
algumas normas e as tarifas a aplicar. Estas questões só foram
resolvidas pelo protocolo de 18 de Dezembro de 1873 estabelecido
pela Comissão de Constantinopla.
O
Egipto encontrava-se num processo de modernização que era, em
grande parte, conseguida à custa de empréstimos externos. O Egipto,
dependente politicamente do Império Otomano, dependia
financeiramente da Europa. Os Europeus, especialmente os Franceses e
os Britânicos, tinham interesses financeiros no Egipto que estavam
ligados aos empréstimos do Estado egípcio, não só para a
construção do Canal de Suez, mas também para numerosas outras
obras. O Egipto, na década de 1860, dispunha de 4.000 Km de
via-férrea, 32.000 Km de canais e 30.000 Km de cabo telegráfico e o
porto de Alexandria foi modernizado. Todos estes melhoramentos
contribuíram para o aumento da produção e das exportações do
Egipto e para o aproximar da Europa mas a dívida tinha crescido a
níveis demasiado elevados. O Egipto tinha contribuído com oito
milhões de libras para a construção do Canal de Suez e, em
contrapartida, devia receber 15% dos benefícios anuais. Os
accionistas que tinham contribuído com uma soma idêntica deviam
receber 75% dos benefícios. Em 1871, as acções que inicialmente
foram adquiridas por 500 francos não valiam mais que 208. Quatro
anos mais tarde (1875), confirmou-se a impossibilidade de o Egipto
cumprir com as obrigações da dívida, que tinha sido constituída
sob condições consideradas escandalosas: 12 a 13% de juro; em
alguns casos chegou aos 27%.
Em
1870/1871 tinha havido guerra na Europa. A França foi derrotada na
Guerra Franco-Prussiana e a Alemanha concluiu a sua unificação. Com
a França enfraquecida, a Grã-Bretanha ganhava espaço de manobra
para controlar o Canal de Suez. Apesar da oposição inicial à sua
construção, os Britânicos preocuparam-se com a sua utilização
que garantia um acesso muito mais rápido à Índia. Os problemas
financeiros do Egipto ofereceram a oportunidade. O Quediva do Egipto
pretendeu vender as acções do governo egípcio à Companhia do
Canal. Os Franceses recusaram devido às dificuldades financeiras que
então atravessavam e aos interesses que detinham na Companhia do
Canal de Suez. O primeiro-ministro britânico, Benjamin Disraeli,
aproveitou a oportunidade e o seu governo comprou em 1875, através
dos Rothschild, as acções do Quediva, isto é, do governo Egípcio,
por 4.000.000 £. O Reino Unido não adquiriu a maioria das acções
mas tornou-se o maior dos accionistas. O
Quediva tinha obtido 180.000 acções das 400.000 emitidas pela
Companhia que geria o canal. Apesar disto, a companhia
nunca perdeu o seu carácter francês, manteve a sede em Paris e, até
à segunda metade do século XX, continuou a chamar-se Compagnie
Universelle du Canal Maritime de Suez.
Desde
que os Britânicos adquiriram as acções do Canal de Suez,
tornaram-se, juntamente com a França, uma das potências europeias
que maiores interesses detinham naquele país. O dinheiro pago pelo
Reino Unido não resolveu de forma nenhuma os problemas financeiros
do Egipto que, a 8 de Abril de 1876, entrou na situação de
bancarrota. O Quediva apresentou duas propostas aos seus credores. A
primeira previa a criação de uma Caixa da dívida pública
internacional composta por representantes do Reino Unido, da França,
da Itália e da Áustria, encarregue de regular as dívidas do Estado
egípcio, e a segunda previa consolidar a dívida total calculada em
91.000.000 £ e reembolsá-la a uma taxa de 7%. As propostas foram
recusadas e foi enviada uma missão financeira ao Egipto que, sob
orientação dos representantes da França e do Reino Unido
apresentaram as propostas que foram transformadas em decreto de 18 de
Novembro de 1876: foi criada uma Caixa da Dívida sob controlo
francês e britânico embora tivesse presente representantes da
Áustria-Hungria; foram nomeados dois controladores financeiros
europeus, um para as receitas e outro para as despesas. Foram
aumentados consideravelmente os impostos.
O
dinheiro que estava a entrar na Caixa da Dívida não era suficiente
para garantir o cumprimento das suas obrigações perante os
credores. Em 1878, foi decidido que os ministros das finanças e das
Obras Públicas, ambos europeus, respondiam perante os credores e não
perante os Egípcios. Estes ministros tentaram controlar as despesas
pela redução de salários o que originou, em Fevereiro de 1879, uma
manifestação de desagrado do Exército egípcio. O Quediva reagiu
nomeando um novo governo e estabelecendo um novo plano para
regularizar as dívidas do Egipto. Estas medidas não agradaram aos
credores, a maior parte dos quais eram franceses. A França tinha
influência no Império Otomano e, a 26 de Junho de 1879, o sultão
otomano demitiu o Quediva do Egipto, Ismail Paxá. Sucedeu-lhe o seu
filho, Taufik. O controlo financeiro anglo-francês foi retomado em
Setembro de 1879, com a nomeação de dois controladores – um
francês e outro britânico - que tinham amplos poderes e respondiam
perante os governos dos seus países. Foi criada uma nova comissão
internacional para tratar o problema da dívida e, a 17 de Julho de
1880, foi publicada a “lei da Liquidação” que visava regular a
situação financeira do Egipto. Das receitas obtidas, o Estado
egípcio apenas recebia o que era estritamente necessário para o seu
funcionamento. Tudo o resto era destinado à liquidação da dívida.
Esta lei só podia ser alterada com o consentimento das potências
credoras.
O Canal de Suez Imagem de http://www.khanelkhalili.com.br/mapasEgito4.htm |
A
demissão de Ismail Paxá provocou o aparecimento de um sentimento
nacionalista que se manifestou em oposição às potências europeias
que exerciam o seu domínio na região. Desenvolveu-se um movimento
contestatário composto por várias facções com abordagens
diferentes: os que pretendiam aprofundar a aproximação ao Ocidente
que podia fornecer os recursos necessários ao desenvolvimento do
Egipto e os que pretendiam uma renovação espiritual, um retorno à
mensagem dos Islão. Em 1881, os oficiais do exército, liderados
pelo coronel Ahamed 'Urabi, um homem de grande carácter,
apoderaram-se do poder. Obrigaram o Quediva Taufik a demitir o
ministro da guerra e a um nomear um dos oficiais revoltosos em seu
lugar. Fizeram outras exigências, entre elas que fossem os Egípcios
a governar efectivamente o país. Na realidade, os movimentos de
contestação criaram um vazio do poder. Os militares egípcios
mostraram ser capazes de fazer oposição ao regime mas não de criar
uma nova política. Os interesses franceses e britânicos estavam
ameaçados e essa situação conduziu a uma intervenção militar.
A
intervenção otomana parecia ser a consequência lógica destes
acontecimentos mas os Franceses queriam evitar que a autoridade turca
fosse restabelecida no Egipto pois constituiria uma ameaça ao
protectorado francês sobre a Tunísia. Os Franceses queriam, no
entanto, salvaguardar a cooperação anglo-francesa no Egipto. Assim,
a 8 de Janeiro de 1882, a França e a Inglaterra publicaram uma
declaração comum em que consideravam a continuação do governo do
Quediva como essencial para o bom funcionamento das instituições e
da economia do Egipto e que ambas as potências combateriam os
inimigos do Quediva. Este documento foi encarado no Egipto como uma
declaração de guerra. Os militares e a facção nacionalista
uniram-se. O Quediva viu-se forçado nomear um governo nacionalista
(5 de Fevereiro). A 29 de Maio, o coronel Ahamed 'Urabi assumiu
poderes ditatoriais. Muitos Europeus começaram a abandonar
Alexandria, onde se tinham instalado os revoltosos. Por outro lado,
os Egípcios começaram a construir fortificações no porto de
Alexandria.
O captain (capitão de mar e guerra) Edward Hobart Seymour, comandante do couraçado HMS Inflexible que, integrado na frota do Mediterrâneo, vigiava a costa egípcia, propôs que as fortificações fossem bombardeadas porque constituíam uma ameaça para os navios que deviam apoiar os Europeus que ali residiam ou que dali pretendiam sair. Os Franceses, que também tinham ali alguns navios da sua frota do Mediterrâneo, não concordaram com esta proposta porque a acção constituiria um acto de guerra. O primeiro-ministro Charles de Freycinet mandou retirar os navios franceses. Os Britânicos permaneceram com uma força de oito couraçados e uma dúzia de canhoneiras e o bombardeamento das fortificações começou a 11 de Julho de 1882. Alguns dias mais tarde, os Britânicos desembarcaram 25.000 homens sob o comando de Sir Garnet Wolsely, a fim de restabelecerem a ordem. Esta força expedicionária incorporava, além das tropas da Grã-Bretanha, guarnições britânicas do Mediterrâneo e da Índia. No entanto, não bastava repor a ordem em Alexandria. Era necessário garantir a segurança do Canal de Suez. O Reino Unido convidou a França a participar na força que devia defender o canal. Charles de Freycinet concordou mas esta não foi a posição do Parlamento que se opôs e recusou os recursos financeiros necessários. No dia 29 de Julho de 1882, Freycinet demitiu-se e o Reino Unido prosseguiu isolado . A demonstrar a importância da região (do canal) para os britânicos está o facto de para ali terem sido enviadas unidades da Brigade of Guards e da Household Cavalry, unidades de elite, raramente utilizadas nos territórios ultramarinos.
O captain (capitão de mar e guerra) Edward Hobart Seymour, comandante do couraçado HMS Inflexible que, integrado na frota do Mediterrâneo, vigiava a costa egípcia, propôs que as fortificações fossem bombardeadas porque constituíam uma ameaça para os navios que deviam apoiar os Europeus que ali residiam ou que dali pretendiam sair. Os Franceses, que também tinham ali alguns navios da sua frota do Mediterrâneo, não concordaram com esta proposta porque a acção constituiria um acto de guerra. O primeiro-ministro Charles de Freycinet mandou retirar os navios franceses. Os Britânicos permaneceram com uma força de oito couraçados e uma dúzia de canhoneiras e o bombardeamento das fortificações começou a 11 de Julho de 1882. Alguns dias mais tarde, os Britânicos desembarcaram 25.000 homens sob o comando de Sir Garnet Wolsely, a fim de restabelecerem a ordem. Esta força expedicionária incorporava, além das tropas da Grã-Bretanha, guarnições britânicas do Mediterrâneo e da Índia. No entanto, não bastava repor a ordem em Alexandria. Era necessário garantir a segurança do Canal de Suez. O Reino Unido convidou a França a participar na força que devia defender o canal. Charles de Freycinet concordou mas esta não foi a posição do Parlamento que se opôs e recusou os recursos financeiros necessários. No dia 29 de Julho de 1882, Freycinet demitiu-se e o Reino Unido prosseguiu isolado . A demonstrar a importância da região (do canal) para os britânicos está o facto de para ali terem sido enviadas unidades da Brigade of Guards e da Household Cavalry, unidades de elite, raramente utilizadas nos territórios ultramarinos.
No
dia 13 de Setembro de 1882, ao amanhecer, os Britânicos lançaram um
ataque de surpresa sobre as forças egípcias, constituídas por
cerca de 38.000 homens e 60 bocas-de-fogo de artilharia sob o comando
de Ahamed 'Urabi, instaladas ao longo da via-férrea e de um canal na
região de Tell el-Kebir. Os Egípcios, de acordo com os testemunhos
de oficiais britânicos, mantiveram-se firmes e combateram com
bravura mas os seus oficiais foram os primeiros a fugir. Derrotados,
retiraram em desordem e sofreram cerca de 2.000 mortos e 500 feridos.
Os Britânicos tiveram baixas muito inferiores: 58 mortos, 379
feridos e 22 desaparecidos. A resistência popular ao avanço das
tropas britânicas foi fraca e, dois dias mais tarde, os Britânicos
ocuparam o Cairo. 'Urabi foi capturado e exilado em Ceilão.
Regressou ao Egipto em 1901. O Egipto, embora formalmente
permanecesse um domínio do Império Otomano, manteve-se controlado
pelos Britânicos através dos cônsules gerais do Império Britânico
no Egipto, até 1919. Após a batalha de Tell el-Kebir, permaneceu no
Egipto uma força militar britânica de 10.000 homens. No ano de
1882, ano em que se estabeleceu a Tríplice Aliança (Alemanha,
Áustria-Hungria e Itália), terminava o “condomínio”
anglo-francês no Egipto.
A
Grã-Bretanha, onde nem todos viam como vantajosa uma política
imperialista, não desejava apoderar-se do Egipto. No entanto, tinha
criado um problema ao agir sem a França e ao intervir militarmente:
por um lado, tinha terminado o condomínio franco-britânico e ficou
isolada no controlo do território; por outro lado, tinha afastado o
movimento nacionalista durante algum tempo mas não existia um poder
que garantisse a segurança dos interesses internacionais. A solução
estava em encontrar forma de sair do Egipto e, simultaneamente,
salvaguardar os seus interesses na região, ou seja, garantir a
segurança do Canal de Suez. Os Franceses, os principais credores do
Egipto, embora não tivessem participado na acção militar que
permitiu aos Britânicos controlar o território, utilizavam o
emaranhado de acordos financeiros que governavam a dívida do Egipto
para dificultar as reformas que os Britânicos ali pretendiam
implementar. O movimento nacionalista foi reprimido mas não
eliminado e constituía sempre um perigo para os interesses
britânicos no Canal de Suez. Os Franceses, a fim de minarem a
posição britânica, tentavam negociar com os Turcos. O resultado
deste clima de insegurança foi o de os Britânicos firmarem ainda
mais a sua posição no Egipto em defesa dos seus interesses.
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