As convenções anglo-russas
Em 1907, a
Rússia encontrava-se enfraquecida por causa da instabilidade interna que se
agravou com a Revolução de 1905 e por causa do esforço canalizado pela guerra
contra o Japão que acabou por terminar com uma derrota humilhante frente àquele
"pequeno país". O Governo britânico continuava a preocupar-se com o
programa naval alemão. A lei de 19 de Maio de 1906 tinha introduzido uma emenda
à Lei Naval de 1900 e essa emenda previa a construção de um número de navios de
guerra superior ao que tinha sido previsto no início do século. Os Britânicos
lançaram o HMS Dreadnought, o navio
mais avançado para a época, em 1906.
A rivalidade
naval entre o Reino Unido e a Alemanha acentuou-se em 1906. A primeira Lei
Naval alemã entrou em vigor em 1897 e definia um programa de expansão da
marinha alemã, explicitando o número de navios de cada classe a serem
construídos até 1904 e o tecto dos custos autorizados para esse programa. A
Segunda Lei Naval, de 1900, estabeleceu objectivos de construção naval mais
ambiciosos, aproximadamente o dobro do previsto na lei anterior. Em 1906, uma
Terceira Lei Naval introduzia uma emenda à anterior, acrescentando ao efectivo
planeado para a marinha de guerra alemã seis grandes cruzadores e quarenta e
oito torpedeiros. Esta "corrida aos armamentos" por parte da Alemanha
tinha a sua contraparte nos programas navais britânicos.
«A
supremacia marítima da Alemanha deve ser reconhecida como incompatível com a
existência do Império Britânico, e mesmo na eventualidade de esse Império
desaparecer, a união do maior poder militar com o maior poder naval num Estado
deve levar o mundo a unir-se pela libertação de tal pesadelo.» A geografia da Grã-Bretanha e a dispersão do seu
Império davam um relevo especial à Royal
Navy. A defesa do território britânico e do seu Império exigia uma marinha
com capacidade de enfrentar as ameaças mais prováveis. Foi nesse sentido que,
em 1889, o Parlamento britânico aprovou uma lei, a Naval Defense Act (31 de Maio), que adoptou o critério Two Power Standard para definir a
dimensão da Royal Navy. Este conceito
significava que a Royal Navy devia
ser tão forte como as duas outras armadas mais fortes quando combinadas. Em
1889, essas duas armadas eram as da França e da Rússia.
1880
|
1890
|
1900
|
1910
|
1914
|
|
Reino
Unido
|
650.000
|
679.000
|
1.065.000
|
2.174.000
|
2.714.000
|
França
|
271.000
|
319.000
|
499.000
|
725.000
|
900.000
|
Rússia
|
200.000
|
180.000
|
383.000
|
401.000
|
679.000
|
EUA
|
169.000
|
240.000
|
333.000
|
824.000
|
985.000
|
Itália
|
100.000
|
242.000
|
245.000
|
327.000
|
498.000
|
Alemanha
|
88.000
|
190.000
|
285.000
|
964.000
|
1.305.000
|
Áustria-Hungria
|
60.000
|
66.000
|
87.000
|
210.000
|
372.000
|
Japão
|
15.000
|
41.000
|
187.000
|
496.000
|
700.000
|
A Análise
dos valores apresentados mostra-nos:
- O extraordinário aumento da tonelagem disponível para o Reino Unido, a partir de 1890 (um ano após a aprovação do Naval Defense Act) e para a Alemanha, a partir de 1900 (a primeira Lei Naval alemã entrou em vigor em 1897).
- A fraqueza do programa russo, mesmo quando se consideram as consequências da Guerra Russo-Japonesa de 1904-1905.
- A crescente potência naval dos EUA.
- A manutenção do critério Two Power Standard pelo Reino Unido: França+Rússia em 1880; França+Itália em 1890; novamente França+Rússia em 1900; Alemanha+França em 1910, mas já com a Entente Cordiale e as conversações entre os estados maiores da França e Reino Unido a decorrerem.
Na segunda
Conferência de Haia (15 de Junho a 18 de Outubro de 1907) a Alemanha continuou
a opor-se a um acordo para o desarmamento. O Almirante Alfred Peter Friedrich
von Tirpitz (1848-1930), Chfe do Estado-Maior Naval de 1892 e Secretário de
Estado da Marinha a partir de Junho de 1897, defendia que a Alemanha devia
possuir uma verdadeira frota de alto mar em vez de se limitar a ter uma força
de defesa costeira. Foi neste sentido que surgiram as Leis Navais alemãs (1898,
1900, 1906). O conceito de Tirpitz não era o de construir uma frota superior à
do Reino Unido. Esse seria um objectivo inatingível. O conceito se Tirpitz
assentava o conceito conhecido como "teoria do risco" segundo o qual
«a frota alemã deveria ser suficientemente poderosa para infligir danos graves
à frota da Potência naval mais forte. A Potência naval mais forte não se aventuraria
a atacar a poderosa frota alemã, uma vez que a sua própria frota ficaria tão
enfraquecida no processo de destruir a marinha alemã que ficaria à mercê de
outras Potências navais.»
Quando
Tirpitz enunciou a sua "teoria do risco", no final do século XIX, O
Reino Unido estava de más relações com a França e a Rússia principalmente por
causa da expansão imperial em África e na Ásia Central. A França e a Rússia
eram aliadas desde 1892 e o Reino Unido não podia deixar de cumprir o rácio estabelecido
pelo Two-Power Standard para poder
enfrentar uma combinação do poder naval daquelas duas Potências ou de uma delas
- a Rússia, certamente - com a Alemanha. Se o Reino Unido estabelecesse um
acordo com a França e a Rússia, não haveria razão para supor que aquelas
Potências aproveitariam a fraqueza temporária da Royal Navy, após uma guerra naval com a Alemanha, para destruir a
posição do Reino Unido no mundo. Se o Reino Unido estabelecesse acordos com a
França e a Rússia, não teria necessidade de manter as mais fortes unidades da
sua frota longe do Mar do Norte.
Em 1904, o
Reino Unido e a França estabeleceram um acordo que ficou conhecido como Entente Cordiale (Ver o artigo "07
A Entente Cordiale"). Este acordo foi posto à prova no decorrer da Crise
de Marrocos de 1905-1906 e saiu reforçado dessa crise (Ver o artigo "09 A
Primeira crise de Marrocos"). Enquanto se davam estes acontecimentos, a
Rússia viu-se envolvida numa guerra contra o Japão, de que saiu derrotada, e a
braços com a Revolução de 1905 (Ver o artigo "08 A Guerra
Russo-Japonesa"). Esta Revolução permitiu que a política externa da Rússia
fosse dirigida por Alexander Petrovich Izvolsky (ministro entre 11 de Maio de
1906 e 11 de Outubro de 1910), um monárquico constitucional que pretendia
estabelecer um longo período de paz para a Rússia para permitir o seu
desenvolvimento interno. No lado britânico, Edward Grey, do Liberal Party, assumiu a pasta de
Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros a 10 de Dezembro de 1905 e iria
mantê-la até 1916. Ambos os lados desejavam a resolução dos problemas coloniais
entre as duas Potências. Os novos ministros russos, no entanto, estavam
conscientes da necessidade de paz. Pouco antes de se tornar primeiro-ministro do
Governo russo, Pyotr Arkadyevich Stolypin (1862-1911) afirmava: «a nossa
situação interna não nos permite conduzir uma política externa agressiva.». Um entendimento com o Reino Unido não estaria,
assim, fora de questão.
A aproximação
anglo-russa parecia aos conservadores russos, tal como aconteceu com as
conversações que conduziram à aliança franco-russa, uma aproximação
contra-natura. Na Rússia, com um regime ainda de natureza autocrática apesar da
entrada em funcionamento de um parlamento (Duma), o Czar e os seus conselheiros
conservadores encontravam grandes afinidades com o regime da Alemanha de
Guilherme II, o que não acontecia relativamente à democracia liberal britânica.
Contudo, os respectivos ministros dos Negócios Estrangeiros, assim como o rei
Eduardo VII, desenvolveram os seus esforços no sentido de se chagar a um
acordo. As questões fundamentais a resolver para que a aproximação fosse
permitida prendiam-se com a expansão russa na Ásia Central e a defesa da Índia
Britânica.
As
negociações entre os representantes do Reino Unido e da Rússia tiveram início
na Primavera de 1906. Avançaram lentamente e houve sempre o risco de
colapsarem. «O ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Izvolsky, queria um
acordo que lhe desse mãos livres nos Balcãs, mas os seus movimentos foram
repetidamente restringidos pelos seus conselheiros militares e pelos seus
próprios receios de antagonizar a Alemanha […] O Estado-Maior general ameaçou
impedir a política de Izvolsky.» Para exercer
pressão sobre o Governo russo, Sir Edward Grey colocou em cima da mesa a
possibilidade de os Britânicos virem a admitir alterações às normas reguladoras
do tráfego marítimo nos Estreitos, no caso de as conversações chegarem a bom
termo. Por fim, foi possível chegar à assinatura de um acordo – Entente – formalizado com a sua
assinatura a 31 de Agosto de 1907. Assinaram o acordo, o embaixador britânico
na Rússia, Sir Arthur Nicholson, e o ministro dos Negócios Estrangeiros da
Rússia, Alexandre P. Izvolsky.
Este acordo
era constituído por três convenções relativas à Pérsia, ao Afeganistão e ao
Tibete, cada uma delas com cinco artigos.
- Convenção relativa à Pérsia -
No
artigo I, o Reino Unido comprometia-se a não interferir ou apoiar quaisquer
intervenções, britânicas ou de terceira Potência, na zona norte da Pérsia,
sendo definidos os limites. No artigo II, a Rússia tomava idêntica atitude
relativamente à zona Sudeste da Pérsia. Pelo artigo III, a Rússia
comprometia-se a não se opor, sem um acordo prévio com o Reino Unido, a
quaisquer concessões aos súbditos britânicos na região central da Pérsia. O
Reino Unido adoptava uma atitude idêntica relativamente à Rússia. Todas as
concessões já existentes nas regiões indicadas nos artigos I e II (a Norte e a
Sudeste) deveriam ser mantidas. Os artigos IV e V tratavam das questões
relativas às dívidas da Pérsia.
A Pérsia
ficava assim dividida em três regiões (ver mapa), ficando as intervenções
estrangeiras nas regiões norte e sudeste da Pérsia ficar sujeitas ao acordo da
Rússia e do Reino Unido respectivamente. Houve o cuidado de não referir estas
zonas como “esferas de influência” embora se tratasse de territórios sobre os
quais as duas Potências, Rússia e Reino Unido, gozavam de um estatuto
preferencial e exerciam influência e controlo. Este cuidado foi tido na
redacção do texto para que não ficasse explícita a divisão da Pérsia entre as
duas Potências. O acordo relativo a esta Convenção foi atingido sem a
participação do Governo da Pérsia. De igual forma, a assinatura da Convenção
foi realizada sem a participação ou o conhecimento prévio daquele Governo.
- Convenção relativa ao Afeganistão -
No artigo I,
o Governo do Reino Unido declarava não ter a intenção de alterar o estatuto
político do Afeganistão e que exerceria a sua influência apenas no sentido
pacífico e não encorajaria aquele país a tomar medidas que pudessem constituir
uma ameaça para a Rússia. O Governo russo, por seu lado, declarava que
reconhecia o Afeganistão como estando fora da sua esfera de influência e
aceitava que as relações diplomáticas com o Afeganistão fossem desenvolvidas
por intermédio do Reino Unido. Comprometia-se também a não enviar agentes para
Afeganistão. No artigo II, o Reino Unido comprometia-se a não anexar ou ocupar
qualquer parte do Afeganistão nem a interferir na administração do país. O artigo
III tratava dos contactos entre as autoridades russas e afegãs para resolução
das questões fronteiriças. O artigo IV reconhecia o princípio da igualdade de
tratamento nas questões comerciais entre o Afeganistão e a Rússia e Reino
Unido. O artigo V tratava da entrada em vigor desta Convenção. Nestes termos, a
Rússia reconhecia o Afeganistão como sendo quase um protectorado britânico.
- Convenção relativa ao Tibete -
Pelo artigo I, a Rússia e o Reino Unido
comprometiam-se a respeitar a integridade territorial do Tibete e a não
interferirem na sua administração interna. O artigo II admitia o princípio da
suserania da China sobre o Tibete. Pelos artigos III e IV, a Rússia e o Reino
Unido comprometiam-se a não enviar representantes para Lhassa e ambos se comprometiam
a não obter quaisquer concessões de caminhos de ferro, estradas, telégrafos,
minas ou outros direitos no Tibete. O artigo V estabelecia que nenhuma parte
dos rendimentos do Tibete podiam ser atribuídos à Rússia ou ao Reino Unido ou
aos seus súbditos. Esta Convenção incluía um anexo que tratava da retirada das
forças britânicas após o pagamento de uma indemnização de 25.000 rupias.
A Tríplice Entente
O acordo
anglo-russo assinado em 1907 permitiu erguer uma barreira de regiões tampão
relativamente aos eixos de aproximação para a Índia (Pérsia, Afeganistão e
Tibete). O acordo foi o instrumento que permitiu a criação da “Tríplice
Entente”. Este agrupamento formado pela França, Reino Unido e Rússia não era um
bloco sólido com compromissos claramente definidos num tratado tal como a
Tríplice Aliança. Em vez disso consistia em três instrumentos bilaterais
separados e distintos: uma aliança entre a França e a Rússia e dois acordos que
tratavam exclusivamente de assuntos extra-europeus.
O acordo
anglo-francês de 1904 - a Entente
Cordiale – não era dirigido contra a Alemanha; destinava-se a liquidar os
diferendos entre a França e o Reino Unido no âmbito da sua expansão colonial.
No entanto, as posições assumidas pela Alemanha durante a Primeira Crise de
Marrocos (1905-1906) e a rivalidade naval anglo-alemã provocaram uma correcção
das intenções da Entente Cordiale
tendo como consequência a intensificação das relações militares anglo-francesas
que se materializaram no trabalho conjunto dos respectivos estados-maiores com
a finalidade de planearem o envio de uma força expedicionária britânica para o
Continente em caso de conflito. Convém lembrar, no entanto, que a Alemanha
detinha interesses em Marrocos.
Na Ásia
Central não existiam de todo interesses alemães e os textos das Convenções
anglo-russas não continham nada que pudesse ser interpretado como dirigido
contra a Alemanha. Contudo, a Europa estava a ficar dividida em dois campos
rivais e o acordo anglo-russo permitiu aos alemães criarem a ideia de cerco (Einkreisung). Esta ideia não estava presente nos objectivos expressos na aliança e
nos acordos que formavam a Tríplice Entente, mas ela não deixava de se
materializar segundo a perspectiva alemã. Ainda antes do início das negociações,
Sir Edward Grey escreveu sobre a utilidade dos acordos do Reino Unido com a
França e com a Rússia: «Se for necessário para reprimir a Alemanha, isso
poderia então ser feito.»
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