quinta-feira, 16 de abril de 2020

O incidente de Agadir - segunda crise de Marrocos


A Acta de Algeciras (1906) deu solução a várias questões relativas aos interesses das Potências que ali desnvolveram as suas actividades industriais e comerciais, mas não resolveu as questões políticas destas Potências no que respeitava a este território; criou a solução para algumas questões internas de Marrocos (polícia dos portos, Banco de Marrocos, etc.) todas elas ligadas a interesses das Potências presentes em Algeciras; não só não resolveu a generalidade dos problemas marroquinos como criou uma situação de grande instabilidade. Foi esta instabilidade que permitiu diversas intervenções militares francesas - em Oujda, junto à fronteira com a Argélia, em Julho de 1907, ou o bombardeamento de Casablanca nesse mesmo ano – resultando em novos acordos com o Sultão permitindo uma ingerência crescente dos Franceses em Marrocos.
Quando foi assinada a Acta de Algeciras, em 1906, era sultão de Marrocos Muley Abd-el-Aziz (1878-1943) que, numa tentativa desajeitada de modernizar Marrocos, endividou ainda mais o país, tornando-o cada vez mais dependente dos interesses estrangeiros. Contra ele surgiram várias revoltas e Marrocos caiu num estado de anarquia. A mais importante dessas revoltas foi encabeçada por Mulei Abdal Hafide (1875-1937), irmão do sultão e que acabaria por conquistar o poder em 1909. Dois anos mais tarde, perante uma revolta que punha em perigo a sua posição como sultão, Mulai Hafid pediu ajuda aos Franceses.
Em resposta ao pedido de ajuda, os Franceses enviaram para Fez uma coluna de tropas que ocupou a cidade a 21 de Maio de 1911. Para os Alemães, este movimento dos Franceses começava a evidenciar uma tentativa de ocupar militarmente todo o território marroquino alterando os acordos anteriormente estabelecidos. O Governo alemão exigiu ao embaixador francês em Berlim que a França retirasse as suas tropas de Fez e cumprisse o estabelecido na Convenção de 1909. O Governo alemão também deixou claro que o passo dado pela França podia significar a reabertura de todo o processo de Marrocos, ou seja, o estatuto da França naquele território teria que ser revisto. Contudo, a situação interna de Marrocos não permitia que os Franceses saíssem de Fez e os Alemães estavam conscientes desse facto.

No dia 1 de Julho de 1911, o Governo alemão notificou as Potências signatárias da Acta de Algeciras de que a canhoneira Panther tinha sido enviada para o porto de Agadir e de que a sua presença justificava-se para, em caso de necessidade, prestar assistência aos súbditos alemães e aos empregados dos estabelecimentos alemães ali existentes. Ora, o porto de Agadir não fazia parte da lista de portos abertos ao comércio estrangeiro e não existiam súbditos alemães na cidade. Ficava claro que o objectivo da intervenção alemã era reabrir a questão de Marrocos. O Governo alemão tinha decidido fazer uma demonstração de força para evitar uma maior penetração francesa em Marrocos e levar a França a negociar uma resolução para o problema. Poderiam até estar outras hipóteses em aberto: «é altamente provável que a Alemanha esperasse conseguir destruir a Tríplice Entente. Também é provável que, no início do incidente, a Alemanha esperasse obter parte de Marrocos para ela própria, contando com a conhecida fraqueza militar da França e a confusão em Inglaterra produzida pela luta no House of Lords para impedir uma oposição séria.»
Os Alemães esperaram uma resposta por parte dos Franceses. Inicialmente, estes estavam dispostos a enviar alguns dos seus navios de guerra para Agadir, mas, conscientes das implicações que esse gesto podia ter em Marrocos e na própria Europa, decidiram deixar o próximo movimento ao cuidado dos Alemães que, assim, se viram na obrigação de apresentar as suas propostas. Alfred von Kiderlen-Waechter (1852-1912), Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros da Alemanha, transmitiu ao embaixador francês em Berlim que a Alemanha esperava receber o Congo Francês em troca da permissão para dar mão livre aos Franceses em Marrocos.
Os Franceses decidiram não aceitar a proposta apresentada por Kiderlen e, ao fazê-lo, deixaram aos Alemães a possibilidade de seguir dois caminhos: ou retiravam a proposta e retiravam as suas forças de Agadir ou seriam obrigados a utilizar a força a fim de manterem os seus objectivos. A persistência da recusa francesa em aceitar a proposta alemã conduziu a um crescimento da tensão entre as duas Potências , o que não foi favoirável a Kiderlen porque nem o Imperador, Guilherme II, nem o Chanceler, Theobald von Bethmann Hollweg (1856-1921) desejavam iniciar uma guerra e porque o Reino Unido decidiu clarificar a sua posição nesta crise.
O Reino Unido começou por esclarecer que não tencionava interferir e preferia apoiar um acordo razoável emtre a França e a Alemanha sobre os territórios africanos. Com o prolongamento das negociações sem que que se registassem progressos, Lloyd George (1863-1945), ministro das Finanças desde 1908, conhecido como um advogado das relações amigáveis entre o Reino Unido e a Alemanha, afirmou no seu discurso de 21 de Julho de 1911 em Mansion House, residência oficial do Lord Mayor of the City of London [Texto do discurso, em língua inglesa, em https://wwi.lib.byu.edu/index.php/Agadir_Crisis:_Lloyd_George%27s_Mansion_House_Speech]:
«Acredito que é essencial para os mais altos interesses, não apenas deste país, mas do mundo, que a Grã-Bretanha mantenha sempre o seu lugar e o seu prestígio entre as Grandes Potências do mundo. A sua poderosa influência já foi no passado e pode ainda ser no futuro, inestimável para a causa da liberdade humana. No passado, mais de uma vez resgatou nações continentais, que às vezes tendem a esquecer esse serviço, de desastres avassaladores e até de extinção nacional. Eu faria grandes sacrifícios para preservar a paz. Penso que nada justificaria uma perturbação da boa vontade internacional, exceto questões da maior importância nacional. Mas se formos forçados a uma situação em que a paz só possa ser preservada com a rendição da grande e benéfica posição que a Grã-Bretanha conquistou por séculos de heroísmo e conquista, permitindo que a Grã-Bretanha seja tratada, por forma a afectar os seus interesses vitais como se ela não fosse de nenhuma importância no concerto das nações, digo enfaticamente que a paz a esse preço seria uma humilhação intolerável para um grande país como o nosso. Honra nacional não é uma questão partidária. A segurança do nosso grande comércio internacional não é uma questão de nenhum partido; é muito mais provável que seja garantida a paz do mundo se todas as nações compreenderem perfeitamente quais devem ser as condições da paz.»
Por outro lado, Sir Edward Grey, o Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros insistiu em que o Reino Unido deveria ser consultado em quaisquer acordos sobre Marrocos.  Arthur James Balfour (1848-1930), líder do Partido Conservador, declarou o apoio da oposição ao Governo nesta matéria. Os políticos da época tiveram também em conta a opinião pública francesa, das diversas tendências, que exigia uma atitude firme do seu Governo. Provavelmente houve alguma pressão por parte da Rússia embora a sua reação tenha sido idêntica à da França quando se deu a Crise de 1908, por causa da Bósnia-Herzegovina, isto é, não estavam em jogo interesses vitais da França que pudessem vir a justificar uma intervenção russa ao abrigo da aliança de 1902. Contudo, com esta situação de instabilidade, a Bolsa de Berlim teve grandes quebras o que levou o Governo alemão a agir de forma mais prudente e a declarar que não tinha quaisquer pretenções sobre o território de Marrocos e que desejava chegar a acordo com o Governo francês.
Poucos tempo depois, a 18 de Agosto de 1911, as negociações foram interrompidas sem que houvesse algum progresso significativo. Os Governos foram, no entanto, pressionados, interna e externamente, para retomarem as negociações, o que aconteceu a 4 de Setembro. Cinco dias mais tarde, a 9 de Setembro, verificou-se outra grande descida nos valores da Bolsa de Berlim e surgiram mais rumores sobre preparativos militares e navais que estariam a ser feitos por cada uma das partes. Apesar disso, os negociadores francês e alemão conseguiram delinear uma convenção que dava à França o protectorado de facto sobre Marrocos, embora este termo não fosse usado nos textos. Em troca, seria estabelecido de forma muito clara o princípio de “porta aberta” naquele território. A Alemanha recebeu partes do território francês no Congo e cedeu à França algum território na região do Lago Chade.
No dia 4 de Novembro de 1911, em Berlim, foram assinadas as convenções relativas a Marrocos e ao Congo. À Convenção sobre Marrocos foi anexada uma declaração do Ministro alemão dos Negócios Estrangeiros em que reconhecia o direito da França criar um protectorado em Marrocos. Os acordos alcançados foram considerados um triunfo para a França e foram obtidos, internamente, com o apoio da opinião pública francesa e, externamente, com o apoio diplomático do Reino Unido. Na Alemanha registaram-se inúmeras críticas à diplomacia do Governo e a opinião pública, em grande parte canalizada pela imprensa ligada ao Governo, virou-se contra o Reino Unido que foi, do ponto de vista alemão, a Potência responsável pela sua derrota diplomática frente à França.
Os líderes alemães compreenderam que a Tríplice Entente era mais coesa do que o tipo de ligação entre os seus membros – entente - podia fazer crer e que, do ponto de vista diplomático tornava-se, assim, mais forte do que a Tríplice Aliança. O Governo alemão também teve ocasião de registar que, tanto por parte dos Governos como da opinião pública, a simpatia era geralmente dirigida a favor da França. Mas a fraqueza diplomática da Alemanha deu mais evidência às conclusões de Tirpitz, o que significava aumentar a dimensão da marinha alemã. Com a oposição de Bethmann, mas com o apoio do Imperador, em 1912 foi aprovada uma nova Lei Naval que acrescentava mais meios aos que estavam previstos nas leis anteriores.

A convenção franco-alemã de 1909


A Acta de Algeciras (1906) atribuiu a várias Potências algumas tarefas em Marrocos. Foi o caso da criação de uma polícia internacional nos oito portos marroquinos abertos ao comércio externo, tarefa que foi atribuída à França e à Espanha. Uma outra criação importante foi a de um Banco de Marrocos (Banque d'Etat du Maroc) para o que várias Potências contribuíram através dos seus sistemas bancários, entre elas a França e a Alemanha. Existia assim, pelo menos uma área em que deviam agir em conjunto e, na realidade, essa cooperação funcionou bem.
Contudo, a França tinha conseguido ocupar posições chave em vários sectores da vida económica marroquina e a agitação que se verificava naquele reino justificou a oportunidade de para ali enviar mais forças militares. A ingerência francesa e espanhola em Marrocos era cada vez maior, o que não passou despercebido e não agradou aos Alemães. O Governo alemão decidiu desenvolver uma política construtiva em relação à França e foi nesse sentido que surgiu a Convenção Franco-Alemã de 8 de Fevereiro de 1909.
De acordo com esta Convenção, a Alemanha reconhecia que existiam interesses políticos especiais da França em Marrocos e declarava que não pretendia causar impedimento a esses interesses. No entanto, exigia algo em troca: a integridade e independência do Reino de Marrocos e a salvaguarda do princípio da igualdade económica, o que implicava não obstruir os interesses industriais e comerciais alemães naquele território. A Convenção estabelecia também que nenhuma das Potências deveria procurar obter ou encorajar outros a obterem privilégios económicos e, o que era muito importante, comprometiam-se a associar os seus nacionais ou as suas empresas em actividades em que uma delas conseguisse obter uma concessão.
Parecia que a Alemanha estava a ir mais longe do que tinha admitido na Conferência de Algeciras pois agora já aceitava a existência de interesses políticos especiais da França em Marrocos. A possibilidade de associação de franceses e alemães em actividades que tenham sido concessionadas a um deles era, para os Alemães, a questão mais importante desta Convenção e, a 2 de Junho de 1909, «propuseram estabelecer um condomínio económico de financiadores franceses e alemães.»
O Governo francês compreendeu então que a Convenção de 8 de Fevereiro abria a possibilidade de a Alemanha expandir as suas actividades em Marrocos colocando este território dependente do arbítrio das decisões alemãs. Tal facto não seria bem aceite pelo Reino Unido o que podia causar danos na Entente Cordiale. Durante os próximos dois anos, a França iria colocar todos os entraves possíveis à aplicação da Convenção de 1909. A França conseguiu desta forma salvaguardar muitos dos seus interesses, mas o processo causou danos nas relações franco-alemãs.

O incidente de Casablanca (1909)

A Conferência de Algeciras, realizada entre 16 de Janeiro e 7 de Abril de 1906, na sequência da Primeira Crise de Marrocos (1905-1906), não resolveu as principais questões relativamente à intervenção das Potências europeias naquele território. Terá evitado um eventual confronto entre as Potências, e reforçou a posição francesa, mas não permitiu a imposição de um sistema de protectorado tal como era ambicionado pela França. Embora estivesse sempre presente uma certa desconfiança e um estado de alerta por parte da Alemanha e da França, estas duas Potências conseguiram resolver de forma pacífica alguns problemas que entretanto surgiram e até estudaram formas de cooperação no campo económico, em Marrocos. Para ilustrar esta afirmação podemos analizar os casos do "incidente de Casablanca" e da "Convenção de Marrocos de 1909". A questão verdadeiramente grave surgiu quando a França teve de intervir na capital marroquina e a Alemanha decidiu aproveitar a situação para obter compensações coloniais em África.

O incidente de Casablanca

A cidade marroquina de Casablanca estava ocupada por forças da Legião Estrangeira Francesa. Esta força militar tinha sido criada por decreto de 9 de Março de 1831, «Il sera formé une légion compossé d’etrangers», quando era Ministro da Guerra de França (Secrétaire d’Etat au Département de la Guerre) o Marechal Nicolas Jean-de-Dieu Soult (1769-1851), o mesmo que comandou as tropas napoleónicas durante a Segunda Invasão Francesa de Portugal (1809). A Legião Estrangeira foi então formada por todos os corpos de tropas estrangeiras que serviam no Exército Francês. O 4º Batalhão da Legião Estrangeira era formado por tropas portuguesas e espanholas.
A Legião Estrangeira Francesa sofreu muitas alterações ao longo dos anos e das várias intervenções militares em que participou, em muitas partes do mundo. Em Marrocos, a Legião esteve presente desde 1907 até 1956, quando Marrocos readquiriu a sua independência. O primeiro corpo expedicionário da Legião desembarcou em Casablanca, a 7 de Agosto. Pouco tempo depois chegaram novas unidades daquele corpo de tropas. A sua missão era a de pacificar o território marroquino onde as lutas pelo poder se tinham agravado com a resistência à crescente presença francesa.
Na Legião Estrangeira, tal como na generalidade das forças militares, foram registadas  deserções. No dia 25 de Setembro de 1908, seis desertores da Legião Estrangeira, três deles com a nacionalidade alemã, tentaram embarcar num navio alemão utilizando salvo-condutos emitidos pelo Consulado Alemão. Os desertores foram reconhecidos por funcionários franceses das instalações portuárias, tendo sido necessário utilizar meios violentos para conseguir a sua prisão, apesar de estarem acompanhados pelo Chanceler do Consulado.
Este acontecimento criou uma controvérsia entre a França e a Alemanha. Os Franceses alegaram que a Alemanha só podia oferecer protecção em Marrocos a pessoas de nacionalidade alemã. Com este argumento, os três desertores não alemães ficavam excluídos da protecção alemã. No entanto, os Franceses também alegaram que o território de Marrocos sob ocupação militar por parte da França estava sujeito exclusivamente à jurisdição francesa e, por esta razão, os três desertores alemães deviam prestar contas à Justiça francesa, não tendo a Alemanha nenhuma autoridade para os proteger.
A Alemanha entendia, por seu lado, que os tratados em vigor lhe permitiam exercer jurisdição extraterritorial em Marrocos e, sendo assim, os três desertores alemães encontravam-se sujeitos exclusivamente à jurisdição do Cônsul alemão em Casablanca. Também alegou que a prisão forçada e violenta dos desertores punha em causa a inviolabilidade dos agentes consulares. Com estes argumentos, a Alemanha exigia a libertação dos desertores de nacionalidade alemã.
Pouco mais de um mês após estes acontecimentos, a França e a Alemanha chegaram a um acordo e, a 10 de Novembro de 1908, os representantes de ambos os governos assinaram um protocolo segundo o qual ambas as partes concordavam em sujeitar esta questão a um processo de arbitragem, o que significava envolver uma terceira parte na resolução do problema. Recorreram então ao processo de arbitragem de acordo com o que se encontrava em vigor nas instâncias internacionais então existentes, o Tribunal Permanente de Arbitragem.
A arbitragem é uma forma de resolução de conflitos que é praticada desde a Antiguidade e foi utilizada com frequência na Idade Média, mas caiu em desuso com o aparecimento dos Estados modernos e voltou a ser utilizada com mais frequência no final do século XIX e início do século XX. Portugal recorreu ao processo de arbitragem para a resolução das questões de Bolama (em 1870), na actual Guiné-Bissau, e da Baía de Lourenço Marques, em Moçambique (1875). Em ambos os casos os árbitros eram ou tinham sido chefes de Estado: o general Ulysses S. Grant (1869-1877), presidente dos Estado Unidos da América, no caso de Bolama, e o Marechal Patrice de Mac Mahon (1808-1893), presidente da República Francesa, em 1875.
A Conferência de Paz que tinham decorrido em Haia, em 1899, permitiu a criação do Tribunal Permanente de Arbitragem. Depois de escolhido o colectivo de personalidades (árbitros) que iria analizar o problema, as reuniões decorreram entre 1 e 19 de Maio de 1909 e a sua decisão foi conhecida a 22 de Maio. Em termos gerais, a decisão do Tribunal de Arbitragem dava razão à França e foi acatada pela Alemanha. Este acontecimento põe em evidência a possibilidade de, naquela época, recorrer a instituições internacionais para resolver este tipo de questões. Devemos ter em atenção, no entanto, que não se tratava de uma questão de ocupação ou anexação de algum território ou, de forma mais específica, não se tratava de atribuir território a uma dessas Potências europeias sem que, de alguma forma, fossem atribuídas compensações às demais Potências.

A anexação da Bósnia-Herzegovina

Situação Internacional

Em 1907, a Europa estava dividida em dois blocos: a Tríplice Entente, formada pela França, Rússia e Reino Unido, e a Tríplice Aliança, formada pela Alemanha, Áustria-Hungria e Itália. Existiam outros acordos e alianças, como os Acordos do Mediterrâneo, a Aliança entre a Roménia e a Áustria-Hungria ou a aliança entre o Reino Unido e o Japão, mas era entre aqueles dois blocos que existiam focos de tensão perigosos para a paz na Europa e no Mundo. Existia um grande antagonismo entre a França e a Alemanha, tanto na Europa por causa da ocupação da Alsácia-Lorena na Guerra Franco-Prussiana de 1970-1971, como fora dela, por questões coloniais de que o exemplo mais recente era o caso de Marrocos (1905-1906). A rivalidade naval entre o Reino Unido e a Alemanha transformou-se numa corrida aos armamentos. A Áustria-Hungria e a Rússia procuravam atenuar os efeitos da sua rivalidade nos Balcãs, para o que estabeleceram alguns acordos. A Itália fazia parte da Tríplice Aliança, mas mostrava mais vontade de cooperar com a França do que com a Áustria-Hungria, com quem tinha fronteira e de quem ambicionava recuperar os territórios irredentos, Trentino e Trieste, entre outros.

Ao acompanhar a formação das alianças e acordos (ententes) encontramos nos seus textos um carácter defensivo e conciliatório. A Aliança Dual (7 Outubro 1879), tratado de aliança entre a Alemanha e a Áustria-Hungria, era nitidamente uma aliança defensiva. O tratado da Tríplice Aliança (20 Maio 1872) não alterou esse carácter. De forma idêntica, a aliança entre a França e a Rússia (18 Agosto 1892) foi firmada tendo como intenção a defesa destas Potências frente à Alemanha e à Áustria-Hungria. Quando o Reino Unido estabeleceu acordos com a França e a Rússia, em 1904 e 1907, o objectivo destas diligências diplomáticas era o de resolver questões de carácter colonial. No entanto, como vimos quando se tratou a questão da Primeira Crise de Marrocos, uma das consequências desta crise foi a de alterar o âmbito das relações entre a França e o Reino Unido, alargando-as ao nível dos respectivos estados-maiores, estudando a possibilidade de uma intervenção britânica em apoio da França. No caso do acordo com a Rússia não se chegou tão longe como aconteceu com a França. Os laços que uniam os membros da Tríplice Entente não eram tão fortes como os da Tríplice Aliança e, muito especialmente, da Aliança Dual.

São estes os actores e as ligações que os unem e opõem num contexto que ultrapassa o do Continente europeu. As chamadas Potências Centrais – Alemanha, Áustria-Hungria e Itália – que formavam a Tríplice Aliança encontravam-se perante um outro bloco, a Tríplice Entente, em que os seus membros se situam a ocidente e a oriente daquele. Convenhamos que é difícil negar aos Alemães, que tinham fronteira com a França e com a Rússia, alguma razão quando se referem ao sentimento de cerco. Patrícia Daehnhardt descreve esta ideia de cerco referindo a obra de Herfried Münkler, Der Grosse Krieg. Die Welt 1914–1918: «Quanto às razões que levaram à eclosão da Guerra, Münkler refere uma «estratégia de duplo cerco»: por um lado, o cerco da monarquia do Danúbio pela Liga dos Balcãs, sob protecção russa e por outro, o cerco da Alemanha pela França e pela Rússia, com a Inglaterra tendencialmente do lado franco-russo. Por fim, em 1914 «quando a guerra é decidida, o sentimento inevitável é de enorme alívio. […] quando a Alemanha declarou guerra à França, segundo o príncipe herdeiro, foi como um término bem-vindo à tensão sempre crescente, um fim ao pesadelo do cerco.» Perante esta ameaça de cerco, a Alemanha utilizou todos os incidentes para tentar criar a desunião entre os membros da Tríplice Entente.

Em 1907, quando os alinhamentos entre as Grandes Potências europeias ficaram definidos, é necessário contar com outras duas Grandes Potências não europeias: Estados Unidos da América e Japão. A América Latina encontrava-se “protegida” desde 1823 pela Doutrina Monroe, lançada por James Monroe, presidente dos Estados Unidos da América entre 1817 e 1825, que na mensagem dirigida ao Congresso, a 2 de Dezembro daquele ano, afirmava: «Julgarmos propícia esta ocasião para afirmar, como um princípio que afecta os direitos e interesses dos Estados Unidos, que os continentes americanos, em virtude da condição livre e independente que adquiriram e conservam, não podem mais ser considerados, no futuro, como susceptíveis de colonização por nenhuma potência europeia.» [Texto em inglês em https://avalon.law.yale.edu/19th_century/monroe.asp]. Na Ásia, a China estava dividida em zonas de influência das Grandes Potências e o Sul daquele grande continente estava em grande parte nas mãos dos Britânicos e também, em muito menor grau, dos Franceses. O continente africano estava praticamente todo ocupado. Os ganhos territoriais quase terminaram e as alterações ao status quo teriam de ser confirmadas pelo conjunto das Grandes Potências. Aliás, qualquer alteração dificilmente poderia ser posta em prática sem interferência nos interesses de outra Potência.

A anexação da Bósnia-Herzegovina

O Tratado de Berlim de 1878, que colocou um fim formal na Guerra Russo-Turca de 1877-1878, estabelecia no seu artigo 25º que «as Províncias da Bósnia e Herzegovina serão ocupadas e administradas pela Áustria-Hungria.» Isto significava que aquele território continuava sob soberania do Império Otomano, mas era administrado pelo Governo da Áustria-Hungria. Apesar disso, o Governo austro-húngaro administrou a área como se tratasse de território anexado e tomou medidas de longo prazo. Foi durante a ocupação austro-húngara que as duas províncias otomanas foram unidas numa única entidade administrativa, a Bósnia-Herzegovina. [Texto do Tratado de Berlim de 1878 em https://www.jstor.org/stable/2212670?read-now=1&refreqid=excelsior%3A3d3a8a7b4069e3c93da6ea2222276c6b&seq=1#page_scan_tab_contents]

A ocupação da Bósnia e da Herzegovina seria a compensação atribuída à Áustria-Hungria pelos ganhos obtidos pela Rússia no sul da Bessarábia e pela criação de uma Bulgária independente sob grande influência russa. Contudo, na Áustria-Hungria, os liberais austríacos e muitos húngaros opunham-se a esta ocupação porque não desejavam que o Império englobasse mais eslavos, mas esta questão tinha de ser examinada tendo em conta as ambições de outros Estados. Se a Monarquia dos Habsburgo não assumisse o controlo da Bósnia e da Herzegovina, estas províncias acabariam por cair em poder da Sérvia que, assim, se tornaria uma Potência maior e uma forte atracção para os Eslavos do sul do Império Austro-Húngaro.

A Áustria-Hungria e a Rússia tinham estabelecido, em 1897 e em 1903, acordos sobre a manutenção do satus quo nos Balcãs e nesses acordos era admitida a anexação da Bósnia-Herzegovina, mas esta deveria ser sujeita a «especial escrutínio no tempo e lugares próprios.» No entanto, verificaram-se importantes mudanças na Sérvia. Alexandre Obrenović (14 Agosto 1876 – 11 Junho 1903) reinou desde 1889 até à sua morte como Alexandre I da Sérvia e manteve um bom relacionamento com o Império Austro-Húngaro. Alexandre I foi assassinado e sucedeu-lhe o rei Pedro Karageorgovich que, ao contrário do seu antecessor, era pró-russo. As relações com a Áustria-Hungria deterioraram-se, chegando a desencadear-se uma guerra comercial que ficou conhecida como “Guerra dos Porcos”. Os Sérvios estabeleceram novos laços com a França e a Rússia. A possibilidade de a Sérvia desencadear acções tendentes a destabilizar as nações eslavas do sul do Império alarmou o Governo austro-húngaro. Algumas personalidades da Monarquia Dual, entre elas o Chefe do Estado-Maior General Conrad von Hötzendorff, defenderam a ideia de uma guerra preventiva contra a Sérvia.

O status quo nos Balcãs sofreu ainda as consequências de um outro acontecimento: a Revolução dos Jovens Turcos, em Julho de 1908. O objectivo dos revoltosos era o de restaurar a Constituição de 1876 no Império Otomano e iniciar um conjunto de reformas. Os Jovens Turcos pretendiam, entre outros objectivos territoriais, restabelecer o controlo sobre a Bósnia e a Herzegovina. O Império Otomano estava enfraquecido, mas a tentativa de recuperar o controlo sobre os territórios ocupados alertou e causou receios no Governo austro-húngaro. Neste Império, o ministro dos Negócios Estrangeiros Alois Lexa von Aehrenthal (1854-1912) encontrava-se em funções desde Outubro de 1906. Na Rússia, desde Maio de 2006 que esse cargo era ocupado por Alexander Petrovich Izvolsky (1856-1919). Aerenthal queria aproveitar as circunstâncias para anexar a Bósnia e a Herzegovina e, desta forma, colocar um fim nas aspirações sérvias. Izvolsky queria igualmente aproveitar as circunstâncias para alterar o status quo relativo aos Estreitos, abrindo-os aos navios de guerra russos. Aerenthal e Izvolsky reuniram-se em Buchlau (na actual República Checa), em Setembro de 1908. Neste encontro, os dois ministros chegaram a um acordo: «a Áustria prometia não se opor aos planos da Rússia relativamente aos Estreitos, ficando estabelecido que Constantinopla era deixada para a Turquia; a Rússia concordou com a anexação da Bósnia.»


Por decreto de 5 de Outubro de 1908, o Governo da Áustria-Hungria anunciou a anexação da Bósnia-Herzegovina. Este anúncio teve de imediato a reacção negativa da Sérvia. A população dos territórios anexados era em grande parte de origem sérvia e este Reino aguardava que a ocupação e administração austro-húngara chegasse a um fim para então poder anexar aquelas províncias. Vendo os seus planos arruinados, a Sérvia exigiu que lhe fosse atribuída uma parte das províncias - uma faixa de território que lhe permitiria chegar ao Mar Adriático - e o seu exército manteve-se em estado de prontidão para a guerra que parecia avizinhar-se. Aerenthal recusou negociar qualquer compensação à Sérvia já que o principal objectivo era o de dar um golpe mortal na agitação dos povos eslavos, agitação que tinha origem naquele país. «Entre os súbditos eslavos dos Habsburgo, os mais inquietos eram os Eslavos do Sul cuja contiguidade com a Sérvia era a causa de aquele pequeno país assumir uma invulgar importância aos olhos do Governo austro-húngaro. […] Pašić, o líder radical e personalidade dominante da política da Sérvia, que era simultaneamente primeiro-ministro e ministro dos Negócios Estrangeiros, em 1904 falou do papel da Sérvia entre os Eslavos do Sul como comparável ao do Piemonte na formação da Itália.» Este conceito fez crescer no Império Austro-Húngaro uma facção que defendia a anexação da própria Sérvia.

Quando a anexação da Bósnia-Herzegovina foi anunciada, Izvolsky encontrava-se a caminho de Paris a fim de obter o consentimento das Grandes Potências para os planos russos e austro-húngaros. Izvolsky foi surpreendido pelo anúncio da anexação e, por outro lado, deparou com a oposição do Reino Unido e da França à abertura dos Estreitos aos navios de guerra russos. A Áustria-Hungria tinha violado, unilateralmente, o Tratado de Berlim de 1878. Perante esta situação, o ministro russo retirou o seu apoio à anexação da Bósnia-Herzegovina e passou a apoiar a posição da Sérvia. Izvolsky defendeu que tinha concordado com o processo, mas tal não dispensava a consulta das Potências, sendo então necessário convocar uma conferência internacional. Aerenthal informou que só aceitaria a conferência se, em negociações prévias, fosse prevista a aprovação da anexação da Bósnia e da Herzegovina, isto é, se a anexação fosse considerada um fait accompli, o que significa, na terminologia das Relações Internacionais, «um acto unilateral, por um estado ou grupo de estados que rápida e dramaticamente altera o status quo. Normalmente engloba o elemento surpresa e tem o efeito de pôr fim a um impasse diplomático.» A situação tornou-se tensa entre a Rússia e a Áustria-Hungria e Conrad von Hötzendorff defendeu que esta era a oportunidade de assumir uma posição ofensiva contra a Sérvia com a finalidade de conter a agitação dos eslavos do sul do Império, mas não teve o apoio de Aerenthal. A Alemanha não desejava envolver-se num conflito nos Balcãs em consequência da sua aliança com a Áustria-Hungria. A Rússia estava na disposição de apoiar a Sérvia caso esta fosse atacada pela Áustria-Hungria e, de acordo com o Artigo 1º da Aliança Dual, se a Áustria-Hungria fosse atacada pela Rússia, «as Altas Partes Contratantes são obrigadas a prestar ajuda mútua com todo o potencial de guerra de seus impérios e de acordo com o objectivo de concluir a paz em conjunto e por mútuo acordo.» [Texto do tratado, em língua inglesa, em https://wwi.lib.byu.edu/index.php/The_Dual_Alliance_Between_Austria-Hungary_and_Germany].

Izvolsky não conseguiu garantir por parte da França e do Reino Unido um apoio idêntico ao que a Áustria-Hungria obtinha por parte da Alemanha. A França era obrigada a agir com muito cuidado atendendo a problemas com a Alemanha em Marrocos, devido ao “Incidente de Casablanca” a 25 de Setembro de 1908. Além disso, a França tinha dúvidas sobre a política russa já que Izvolsky, na reunião com Aerenthal em Buchlau, tinha chegado a acordo sem o conhecimento dos franceses e, além disso, a situação não constituía uma ameaça para os interesses vitais da Rússia. A França não estava na disposição de ser arrastada para uma guerra nos Balcãs e, sem o apoio francês, a Rússia não tinha condições para enfrentar a Áustria-Hungria e a Alemanha. O Reino Unido não prometeu mais do que apoio diplomático.

Foram então iniciadas diligências diplomáticas no sentido de resolver a crise que tinha sido iniciada em consequência da anexação da Bósnia-Herzegovina. Em Março de 1909, a Alemanha pressionou os Russos para retirarem o seu apoio à Sérvia. As negociações com a Turquia levaram o Governo otomano a aceitar a anexação da Bósnia-Herzegovina em troca de uma compensação monetária no valor de 2.400.000 £. Através de uma troca de notas, as Potências aprovaram a anexação da Bósnia-Herzegovina. A Sérvia teve de declarar que aceitava a resolução das Potências e comprometeu-se a reatar as relações normais com a Áustria-Hungria o que implicava abandonar a propaganda e a agitação entre os Eslavos do Sul, o que nunca foi cumprido.

As Potências da Entente tiraram lições destes acontecimentos. Para os franceses ficou demonstrado que era necessário dar mais atenção às suas forças armadas a fim de restabelecer o equilíbrio que tinha sido deslocado a favor da Tríplice Aliança, ou melhor, da Aliança Dual. A Rússia, reconhecendo a sua incapacidade para resistir à Alemanha e desapontada com a falta de apoio por parte da França e do Reino Unido, acelerou a reorganização e expansão do seu exército. Os Britânicos expandiram o seu programa de construção naval por forma a manter o critério Two Power Standard. Acelerou-se a corrida aos armamentos. Do lado da Tríplice Aliança, os partidários da guerra contra a Sérvia ganharam força. Conrad von Hötzendorff, o Chefe do estado Maior General da Áustria-Hungria, tentou influenciar o Imperador contra a Sérvia ou, como ele afirmou, «contra aquele ninho de vespas.» A Alemanha demonstrou à Rússia a sua fraqueza e Helmuth von Moltke, o chefe do Estado-Maior General alemão, deixou claro ao chefe do Estado-Maior General russo que «no momento em que a Rússia mobilizar, a Alemanha também mobilizará e mobilizará inquestionavelmente todo o seu exército.»

Os interesses italianos nos Balcãs foram ignorados. Por causa disso, a Itália concordou em apoiar a Rússia nas suas ambições sobre os Estreitos enquanto a Rússia apoiaria a Itália nas suas ambições sobre Tripoli. Na Sérvia, a situação provocou um exacerbamento do nacionalismo. Após a anexação da Bósnia-Herzegovina, ainda em 1908, foi criado um grupo nacionalista chamado Narodna Odbrana (A Defesa do Povo) que durante as Guerras dos Balcãs (1912-1913) cometeram diversos crimes sobre a população não sérvia em territórios conquistados. Esta veio a ser uma organização de fachada para outra chamada “Unificação ou Morte”, também conhecida como “Mão Negra” sobre a qual caiu a responsabilidade pelo planeamento e execução do assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando da Áustria em Julho de 1914.

A crise provocada pela anexação da Bósnia-Herzegovina fortaleceu os laços entre a Alemanha e a Áustria-Hungria. O apoio dado pela Alemanha foi decisivo para o desfecho desta crise, ao contrário do que se verificou do lado da Entente. Ao contrário de Bismarck, que não desejava ver-se envolvido numa guerra por causa da política austro-húngara nos Balcãs - «Para nós, as questões dos Balcãs não podem em caso algum ser motivo para uma guerra.» – o actual chanceler alemão, Bernhard von Bülow (1849-1929), no Governo entre 16 de Outubro de 1900 e 16 de Julho de 1909, decidiu que a Alemanha seria parte activa na questão, mas deixou que a Áustria liderasse os acontecimentos. De qualquer forma, os respectivos Estados-Maiores, sob a liderança de Conrad von Hötzendorff e de Helmuth von Moltke, estudaram a possibilidade de desenvolvimento de operações militares para o caso de o conflito diplomático evoluir no sentido de um conflito militar.

No final, a anexação da Bósnia-Herzegovina pela Áustria-Hungria foi aceite como um fait accompli, mas as pretensões da Rússia relativamente aos Estreitos foram negadas pelas mesmas Potências que aceitaram a anexação.

terça-feira, 24 de março de 2020

A "entente" anglo-russa; a formação da Tríplice Entente

As convenções anglo-russas

Em 1907, a Rússia encontrava-se enfraquecida por causa da instabilidade interna que se agravou com a Revolução de 1905 e por causa do esforço canalizado pela guerra contra o Japão que acabou por terminar com uma derrota humilhante frente àquele "pequeno país". O Governo britânico continuava a preocupar-se com o programa naval alemão. A lei de 19 de Maio de 1906 tinha introduzido uma emenda à Lei Naval de 1900 e essa emenda previa a construção de um número de navios de guerra superior ao que tinha sido previsto no início do século. Os Britânicos lançaram o HMS Dreadnought, o navio mais avançado para a época, em 1906.

A rivalidade naval entre o Reino Unido e a Alemanha acentuou-se em 1906. A primeira Lei Naval alemã entrou em vigor em 1897 e definia um programa de expansão da marinha alemã, explicitando o número de navios de cada classe a serem construídos até 1904 e o tecto dos custos autorizados para esse programa. A Segunda Lei Naval, de 1900, estabeleceu objectivos de construção naval mais ambiciosos, aproximadamente o dobro do previsto na lei anterior. Em 1906, uma Terceira Lei Naval introduzia uma emenda à anterior, acrescentando ao efectivo planeado para a marinha de guerra alemã seis grandes cruzadores e quarenta e oito torpedeiros. Esta "corrida aos armamentos" por parte da Alemanha tinha a sua contraparte nos programas navais britânicos.

«A supremacia marítima da Alemanha deve ser reconhecida como incompatível com a existência do Império Britânico, e mesmo na eventualidade de esse Império desaparecer, a união do maior poder militar com o maior poder naval num Estado deve levar o mundo a unir-se pela libertação de tal pesadelo.» A geografia da Grã-Bretanha e a dispersão do seu Império davam um relevo especial à Royal Navy. A defesa do território britânico e do seu Império exigia uma marinha com capacidade de enfrentar as ameaças mais prováveis. Foi nesse sentido que, em 1889, o Parlamento britânico aprovou uma lei, a Naval Defense Act (31 de Maio), que adoptou o critério Two Power Standard para definir a dimensão da Royal Navy. Este conceito significava que a Royal Navy devia ser tão forte como as duas outras armadas mais fortes quando combinadas. Em 1889, essas duas armadas eram as da França e da Rússia.

O quadro seguinte mostra a tonelagem em navios de guerra das Grandes Potências, entre 1880 e 1914:


1880
1890
1900
1910
1914
Reino Unido
650.000
679.000
1.065.000
2.174.000
2.714.000
França
271.000
319.000
499.000
725.000
900.000
Rússia
200.000
180.000
383.000
401.000
679.000
EUA
169.000
240.000
333.000
824.000
985.000
Itália
100.000
242.000
245.000
327.000
498.000
Alemanha
88.000
190.000
285.000
964.000
1.305.000
Áustria-Hungria
60.000
66.000
87.000
210.000
372.000
Japão
15.000
41.000
187.000
496.000
700.000


A Análise dos valores apresentados mostra-nos:
  • O extraordinário aumento da tonelagem disponível para o Reino Unido, a partir de 1890 (um ano após a aprovação do Naval Defense Act) e para a Alemanha, a partir de 1900 (a primeira Lei Naval alemã entrou em vigor em 1897).
  • A fraqueza do programa russo, mesmo quando se consideram as consequências da Guerra Russo-Japonesa de 1904-1905.
  • A crescente potência naval dos EUA.
  • A manutenção do critério Two Power Standard pelo Reino Unido: França+Rússia em 1880; França+Itália em 1890; novamente França+Rússia em 1900; Alemanha+França em 1910, mas já com a Entente Cordiale e as conversações entre os estados maiores da França e Reino Unido a decorrerem.

Na segunda Conferência de Haia (15 de Junho a 18 de Outubro de 1907) a Alemanha continuou a opor-se a um acordo para o desarmamento. O Almirante Alfred Peter Friedrich von Tirpitz (1848-1930), Chfe do Estado-Maior Naval de 1892 e Secretário de Estado da Marinha a partir de Junho de 1897, defendia que a Alemanha devia possuir uma verdadeira frota de alto mar em vez de se limitar a ter uma força de defesa costeira. Foi neste sentido que surgiram as Leis Navais alemãs (1898, 1900, 1906). O conceito de Tirpitz não era o de construir uma frota superior à do Reino Unido. Esse seria um objectivo inatingível. O conceito se Tirpitz assentava o conceito conhecido como "teoria do risco" segundo o qual «a frota alemã deveria ser suficientemente poderosa para infligir danos graves à frota da Potência naval mais forte. A Potência naval mais forte não se aventuraria a atacar a poderosa frota alemã, uma vez que a sua própria frota ficaria tão enfraquecida no processo de destruir a marinha alemã que ficaria à mercê de outras Potências navais.»

Quando Tirpitz enunciou a sua "teoria do risco", no final do século XIX, O Reino Unido estava de más relações com a França e a Rússia principalmente por causa da expansão imperial em África e na Ásia Central. A França e a Rússia eram aliadas desde 1892 e o Reino Unido não podia deixar de cumprir o rácio estabelecido pelo Two-Power Standard para poder enfrentar uma combinação do poder naval daquelas duas Potências ou de uma delas - a Rússia, certamente - com a Alemanha. Se o Reino Unido estabelecesse um acordo com a França e a Rússia, não haveria razão para supor que aquelas Potências aproveitariam a fraqueza temporária da Royal Navy, após uma guerra naval com a Alemanha, para destruir a posição do Reino Unido no mundo. Se o Reino Unido estabelecesse acordos com a França e a Rússia, não teria necessidade de manter as mais fortes unidades da sua frota longe do Mar do Norte.

Em 1904, o Reino Unido e a França estabeleceram um acordo que ficou conhecido como Entente Cordiale (Ver o artigo "07 A Entente Cordiale"). Este acordo foi posto à prova no decorrer da Crise de Marrocos de 1905-1906 e saiu reforçado dessa crise (Ver o artigo "09 A Primeira crise de Marrocos"). Enquanto se davam estes acontecimentos, a Rússia viu-se envolvida numa guerra contra o Japão, de que saiu derrotada, e a braços com a Revolução de 1905 (Ver o artigo "08 A Guerra Russo-Japonesa"). Esta Revolução permitiu que a política externa da Rússia fosse dirigida por Alexander Petrovich Izvolsky (ministro entre 11 de Maio de 1906 e 11 de Outubro de 1910), um monárquico constitucional que pretendia estabelecer um longo período de paz para a Rússia para permitir o seu desenvolvimento interno. No lado britânico, Edward Grey, do Liberal Party, assumiu a pasta de Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros a 10 de Dezembro de 1905 e iria mantê-la até 1916. Ambos os lados desejavam a resolução dos problemas coloniais entre as duas Potências. Os novos ministros russos, no entanto, estavam conscientes da necessidade de paz. Pouco antes de se tornar primeiro-ministro do Governo russo, Pyotr Arkadyevich Stolypin (1862-1911) afirmava: «a nossa situação interna não nos permite conduzir uma política externa agressiva.». Um entendimento com o Reino Unido não estaria, assim, fora de questão.

A aproximação anglo-russa parecia aos conservadores russos, tal como aconteceu com as conversações que conduziram à aliança franco-russa, uma aproximação contra-natura. Na Rússia, com um regime ainda de natureza autocrática apesar da entrada em funcionamento de um parlamento (Duma), o Czar e os seus conselheiros conservadores encontravam grandes afinidades com o regime da Alemanha de Guilherme II, o que não acontecia relativamente à democracia liberal britânica. Contudo, os respectivos ministros dos Negócios Estrangeiros, assim como o rei Eduardo VII, desenvolveram os seus esforços no sentido de se chagar a um acordo. As questões fundamentais a resolver para que a aproximação fosse permitida prendiam-se com a expansão russa na Ásia Central e a defesa da Índia Britânica.

As negociações entre os representantes do Reino Unido e da Rússia tiveram início na Primavera de 1906. Avançaram lentamente e houve sempre o risco de colapsarem. «O ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Izvolsky, queria um acordo que lhe desse mãos livres nos Balcãs, mas os seus movimentos foram repetidamente restringidos pelos seus conselheiros militares e pelos seus próprios receios de antagonizar a Alemanha […] O Estado-Maior general ameaçou impedir a política de Izvolsky.» Para exercer pressão sobre o Governo russo, Sir Edward Grey colocou em cima da mesa a possibilidade de os Britânicos virem a admitir alterações às normas reguladoras do tráfego marítimo nos Estreitos, no caso de as conversações chegarem a bom termo. Por fim, foi possível chegar à assinatura de um acordo – Entente – formalizado com a sua assinatura a 31 de Agosto de 1907. Assinaram o acordo, o embaixador britânico na Rússia, Sir Arthur Nicholson, e o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Alexandre P. Izvolsky.

Este acordo era constituído por três convenções relativas à Pérsia, ao Afeganistão e ao Tibete, cada uma delas com cinco artigos.

- Convenção relativa à Pérsia -
No artigo I, o Reino Unido comprometia-se a não interferir ou apoiar quaisquer intervenções, britânicas ou de terceira Potência, na zona norte da Pérsia, sendo definidos os limites. No artigo II, a Rússia tomava idêntica atitude relativamente à zona Sudeste da Pérsia. Pelo artigo III, a Rússia comprometia-se a não se opor, sem um acordo prévio com o Reino Unido, a quaisquer concessões aos súbditos britânicos na região central da Pérsia. O Reino Unido adoptava uma atitude idêntica relativamente à Rússia. Todas as concessões já existentes nas regiões indicadas nos artigos I e II (a Norte e a Sudeste) deveriam ser mantidas. Os artigos IV e V tratavam das questões relativas às dívidas da Pérsia.


A Pérsia ficava assim dividida em três regiões (ver mapa), ficando as intervenções estrangeiras nas regiões norte e sudeste da Pérsia ficar sujeitas ao acordo da Rússia e do Reino Unido respectivamente. Houve o cuidado de não referir estas zonas como “esferas de influência” embora se tratasse de territórios sobre os quais as duas Potências, Rússia e Reino Unido, gozavam de um estatuto preferencial e exerciam influência e controlo. Este cuidado foi tido na redacção do texto para que não ficasse explícita a divisão da Pérsia entre as duas Potências. O acordo relativo a esta Convenção foi atingido sem a participação do Governo da Pérsia. De igual forma, a assinatura da Convenção foi realizada sem a participação ou o conhecimento prévio daquele Governo.

- Convenção relativa ao Afeganistão -

No artigo I, o Governo do Reino Unido declarava não ter a intenção de alterar o estatuto político do Afeganistão e que exerceria a sua influência apenas no sentido pacífico e não encorajaria aquele país a tomar medidas que pudessem constituir uma ameaça para a Rússia. O Governo russo, por seu lado, declarava que reconhecia o Afeganistão como estando fora da sua esfera de influência e aceitava que as relações diplomáticas com o Afeganistão fossem desenvolvidas por intermédio do Reino Unido. Comprometia-se também a não enviar agentes para Afeganistão. No artigo II, o Reino Unido comprometia-se a não anexar ou ocupar qualquer parte do Afeganistão nem a interferir na administração do país. O artigo III tratava dos contactos entre as autoridades russas e afegãs para resolução das questões fronteiriças. O artigo IV reconhecia o princípio da igualdade de tratamento nas questões comerciais entre o Afeganistão e a Rússia e Reino Unido. O artigo V tratava da entrada em vigor desta Convenção. Nestes termos, a Rússia reconhecia o Afeganistão como sendo quase um protectorado britânico.

- Convenção relativa ao Tibete -

Pelo artigo I, a Rússia e o Reino Unido comprometiam-se a respeitar a integridade territorial do Tibete e a não interferirem na sua administração interna. O artigo II admitia o princípio da suserania da China sobre o Tibete. Pelos artigos III e IV, a Rússia e o Reino Unido comprometiam-se a não enviar representantes para Lhassa e ambos se comprometiam a não obter quaisquer concessões de caminhos de ferro, estradas, telégrafos, minas ou outros direitos no Tibete. O artigo V estabelecia que nenhuma parte dos rendimentos do Tibete podiam ser atribuídos à Rússia ou ao Reino Unido ou aos seus súbditos. Esta Convenção incluía um anexo que tratava da retirada das forças britânicas após o pagamento de uma indemnização de 25.000 rupias.

A Tríplice Entente

O acordo anglo-russo assinado em 1907 permitiu erguer uma barreira de regiões tampão relativamente aos eixos de aproximação para a Índia (Pérsia, Afeganistão e Tibete). O acordo foi o instrumento que permitiu a criação da “Tríplice Entente”. Este agrupamento formado pela França, Reino Unido e Rússia não era um bloco sólido com compromissos claramente definidos num tratado tal como a Tríplice Aliança. Em vez disso consistia em três instrumentos bilaterais separados e distintos: uma aliança entre a França e a Rússia e dois acordos que tratavam exclusivamente de assuntos extra-europeus.

O acordo anglo-francês de 1904 - a Entente Cordiale – não era dirigido contra a Alemanha; destinava-se a liquidar os diferendos entre a França e o Reino Unido no âmbito da sua expansão colonial. No entanto, as posições assumidas pela Alemanha durante a Primeira Crise de Marrocos (1905-1906) e a rivalidade naval anglo-alemã provocaram uma correcção das intenções da Entente Cordiale tendo como consequência a intensificação das relações militares anglo-francesas que se materializaram no trabalho conjunto dos respectivos estados-maiores com a finalidade de planearem o envio de uma força expedicionária britânica para o Continente em caso de conflito. Convém lembrar, no entanto, que a Alemanha detinha interesses em Marrocos.

Na Ásia Central não existiam de todo interesses alemães e os textos das Convenções anglo-russas não continham nada que pudesse ser interpretado como dirigido contra a Alemanha. Contudo, a Europa estava a ficar dividida em dois campos rivais e o acordo anglo-russo permitiu aos alemães criarem a ideia de cerco (Einkreisung). Esta ideia não estava presente nos objectivos expressos na aliança e nos acordos que formavam a Tríplice Entente, mas ela não deixava de se materializar segundo a perspectiva alemã. Ainda antes do início das negociações, Sir Edward Grey escreveu sobre a utilidade dos acordos do Reino Unido com a França e com a Rússia: «Se for necessário para reprimir a Alemanha, isso poderia então ser feito.»

A rivalidade anglo-russa na Ásia Central e no Extremo Oriente


Entre 1223 e 1240, os principados russos não conseguiram unir-se para combaterem os Mongóis que, sob a liderança de Genghis Khan (c. 1162-1227), avançaram da Ásia Oriental em direcção à Europa. Durante cerca de 250 anos, os Russos sofreram o domínio mongol. Em todas as desvantagens desse domínio destrutivo, merece especial realce o isolamento a que a Rússia foi votada. Entretanto, o aumento da extensão do império mongol e a mudança de carácter dos seus líderes ditaram a sua queda e, à medida que o domínio mongol enfraquecia foram reatados os contactos com os reinos e impérios balcânicos. Esta aproximação, contudo, foi anulada pela conquista de Constantinopla pelos Turcos em 1453. De meados do século XIII a meados do século XV, Moscóvia (o Principado com capital em Moscovo) cresceu e chamou a si a supremacia sobre os restantes Estados eslavos da Rússia.
Ivan III (1440-1505), ou Ivan o Grande, governou de 1462 a 1505 e apoderou-se dos principados vizinhos mais fracos. Com o reinado do seu neto Ivan, o Terrível (1533-1547 como príncipe de Moscóvia e 1547-1584 como czar da Rússia), os canatos (principados) mongóis de Kazan e Astrakhan foram dominados por Moscóvia. O domínio de Astrakhan conduziu à primeira guerra russo-turca, em 1569-1570. A partir de 1580, o comércio de peles começou a atrair os russos para a Sibéria e a expansão só terminou quando o Oceano Pacífico foi atingido, em 1671. Em 1742, os russos atravessaram o Estreito de Bering e iniciaram a exploração do Alasca. No seu apogeu o Império Russo incluía, além do território russo actual, a Lituânia, a Letónia, a Estónia, a Finlândia, a região do Cáucaso, a Ucrânia, a Bielorrússia, uma parte da Polónia, a Moldávia (Bessarábia) e vastos territórios na Ásia Central. A Crimeia, onde se deram os principais acontecimentos militares da guerra em 1853-1856 e hoje se encontra sob controverso domínio russo, foi conquistada em 1783, poucos anos depois de terem conseguido a sua independência do Império Otomano.

Neste processo de expansão, a Rússia conquistou posições na Ásia Central. O seu objectivo é alvo de controvérsia. Pretendiam os russos chegar à Índia ou obter uma saída para o Oceano Índico? O general Silvestre dos Santos (ver bibliografia) cita Peter Hopkirk em The Great Game – The struggle for empire in Central Asia: «O objectivo real da Rússia era, não a Índia, mas Constantinopla: para manter a Grã-Bretanha sossegada na Europa, devia mantê-la ocupada na Ásia.». O conjunto das acções desenvolvidas pela Rússia e pelo Reino Unido na Ásia Central, no âmbito da expansão russa e da defesa da Índia Britânica ficaram conhecidas como o “Grande Jogo”, um termo atribuído a Arthur Connolly (1807-1842), escritor, explorador e agente do serviço de informações britânico, e que ele utilizou para descrever o conflito entre Britânicos e Russos pela supremacia na Ásia Central ao longo do século XIX. O historiador britânico Malcolm Edward Yapp (1931-) explica-nos o significado daquela expressão:
«Tanto no uso popular como no uso académico o termo tem dois significados. O primeiro, com um sentido mais restrito, refere-se às alegadas actividades dos agentes secretos britânicos e russos na Ásia Central, agentes enviados para colherem informações de valor militar e político e talvez para lançar as fundações da influência política sobre os povos da região. No seu segundo e mais alargado sentido refere-se á rivalidade da Grã-Bretanha e da Rússia na Ásia Central e envolve a questão da defesa da Índia Britânica contra uma possível invasão vinda de Noroeste. A origem da utilização académica do termo numa Raleigh Lecture na British Academy, a 10 de Novembro de 1926, pelo professor H. W. C. Davis, intitulada “The Great game in Asia (1800-1844), que era uma descrição dos acontecimentos que conduziram à primeira Anglo-Afghan war (Primeira Guerra do Afeganistão) e sobre a própria guerra. […] Davis encontrou o termo “grande jogo” numa carta escrita no final de Julho de 1840 por um agente político britânico, Capitão Arthur Connolly, para o Major Henry Rawlinson […] agente político em Qandahar […]: “You’ve a great game, a noble game before you”.»
Podemos dizer que se gerou entre os Impérios Britânico e Russo uma “guerra fria” em que os dois grandes antagonistas não chegaram a confrontar-se no terreno, mas que procuraram utilizar outros actores para servirem os seus interesses. Foi neste âmbito que se deu a Primeira Guerra do Afeganistão (1839-1842), as guerras com o Império Sique (1845-1846 e 1848-1849), a Guerra Anglo-Persa (1856-1857) e a Segunda Guerra Anglo-Afegã (1878-1880). A política britânica que conduziu a estas guerras foi amplamente debatida no Reino Unido nos anos trinta do século XIX. Os Britânicos deviam decidir se iriam manter as fronteiras então existentes ou avançar na Ásia Central; se deviam formar estados tampão ou evitar qualquer acordo na região e contar apenas com o poder britânico; se deviam fazer um esforço militar na Ásia Central ou em alguma outra parte do mundo; se deviam opor-se à Rússia ou procurar um acordo com ela.


Só três décadas mais tarde, quando a Rússia avançou no Turquestão, foi definita a estratégia utilizada até 1907: os britânicos iriam obter posições avançadas, colocando na Ásia Central agentes britânicos e indianos com a missão de produzirem informações, esforçando-se por estabelecerem estados tampão na Pérsia e Afeganistão, sem excluir a possibilidade de acordos com a Rússia. Os britânicos consideraram que, para atingirem a Índia, os Russos necessitavam de utilizar uma ou mais rotas que permitisse o avanço dos corpos de forças com dimensão suficiente, que pudessem concentrar-se quando necessário e que permitissem estabelecer uma linha de comunicações eficaz para a sobrevivência dessas forças. Existiam duas rotas que permitiam que uma força russa de dimensão adequada atingisse a Índia:
  • A primeira rota partia de Orenburg, na Ásia Central Russa, nas margens do rio Ural, passava por Khiva, no actual Uzbequistão, e chegaria a Khiva, no norte do Afeganistão, após uma viagem que, nas estradas actuais, totaliza quase cerca de 2.900 Km. A partir de Balkh, a força invasora deveria seguir a rota para Cabul, a quase 450 Km de distância, e daí para Jalalabad, já próximo da fronteira com a Índia. O Passo Khyber seria a via pela qual atravessaria as montanhas na actual fronteira entre o Afeganistão e o Paquistão, chegar rapidamente a Pexauar e ao Rio Indo.
  • A segunda rota, mais para Ocidente, implicava a conquista de Herat no noroeste do Afeganistão. Daí seguiriam o percurso Kandahar e Quetta, mais a sul qua a primeira rota. A entrada no território do actual Paquistão seria feita pelo Desfiladeiro de Bolan.

Com ponto de partida em Orenburgo, a segunda rota é substancialmente mais curta, mas a primeira permitia melhor abastecimento de água e evitava confrontos com os Turcomenos que habitavam o actual Turquestão, o nordeste do Irão e noroeste do Afeganistão. Em qualquer dos casos seria necessário passar pelo Afeganistão e, por isso, os Britânicos desenvolveram o interesse em manterem o Afeganistão como um estado tampão, estratégia já iniciada na primeira metade do século XIX quando se deu a Primeira Guerra Anglo-Afegã, mas que não correu da melhor forma aos Britânicos. Aliás, a tradição da resistência afegã vinha de há muitos séculos: Alexandre, o Grande (356-323 a.C.) conquistou um império imenso que incluía o Império Persa, lançou incursões na Índia, mas, embora tenha atravessado o território, nunca conseguiu conquistar o Afeganistão (a Província Bactro-Sogdiana do Império Persa). Genghis Khan abandonou a empresa perante a resistência dos povos afegãos. Muito tempo depois, um oficial britânico afirmava que «se os afegãos, como nação, estiverem determinados a resistir aos invasores, as dificuldades tornar-se-iam intransponíveis» razão pela qual os Britânicos tinham todo o interesse em manter um Afeganistão unido, com capacidade de oferecer uma resistência apreciável aos invasores russos.




No Usbequistão, em 1865, os Russos anexaram formalmente Tashkent, a actual capital daquele país; também anexaram Bukhara e Samarcanda, na parte oriental, em 1868, e Khiva, em 1870, junto à fronteira com o Turquemenistão. Tinham conseguido estabelecer uma base a partir da qual poderiam ameaçar a independência da Pérsia e do Afeganistão e, portanto, a Índia Britânica. Em 1878, a Rússia conseguiu colocar uma missão diplomática em Cabul, o que foi recusado aos Britânicos. A grande influência que a Rússia estava a ter no Afeganistão levou os Britânicos a agirem dando origem à Segunda Guerra Anglo-Afegã (1878-1880). No final, os Britânicos conseguiram afastar a influência russa e estabelecer um governo favorável e estável no Afeganistão.

A Rússia não deixou, no entanto, de avançar para sul. Em 1881, no Turquemenistão, conquistaram Geok-Tepe e, três anos depois, Merv. O Turquemenistão passou a constituir a província Transcaspiana da Rússia. Entretanto, os Russos tinham iniciado a construção de uma via férrea em direcção a Merv. Este facto causou grande preocupação aos britânicos porque esta infra-estrutura podia fazer chegar rapidamente tropas à fronteira com o Afeganistão. Nesta altura estava já em funcionamento a Joint Anglo-Russian Boundary Commission (Comissão conjunta anglo-russa para a fronteira afegã) que, com o trabalho desenvolvido em 1884, 1885 e 1886 permitiu obter um acordo sobre as fronteiras apesar dos numerosos incidentes verificados durante os trabalhos da comissão. Neste processo os Afegãos nunca foram chamados a intervir.

Todos estes passos foram dados pelos Britânicos para defenderem a Índia de uma provável invasão dos Russos. Mas «poucos de cada lado acreditavam que uma invasão russa fosse provável e na realidade todas as provas sobre a Rússia mostravam que não existia uma invasão planeada: ambos os lados acreditavam que o principal perigo vinha da insatisfação interna na Índia Britânica e que a abordagem da Rússia exacerbaria o perigo existente, forçaria a Grã-Bretanha a manter uma guarnição maior e tornaria a Índia não rentável para manter.» Todas as expedições em direcção à fronteira da Índia teriam como objectivo, não a invasão da Índia, mas servirem de catalisadores de insurreições, forçando os Britânicos a aumentar os efectivos das suas guarnições, o que os obrigaria a reduzirem as forças disponíveis para enfrentarem a Rússia no Médio Oriente ou nos Balcãs.

No dia 10 de Setembro de 1885 foi assinado em Londres o Delimitation Protocol Between Great Britain and Russia (Protocolo de Delimitação Entre a Grã-Bretanha e a Rússia) que definia a fronteira norte do Afeganistão. Até 1888 foram estabelecidos 19 protocolos adicionais a delimitarem certas zonas da fronteira em mais detalhe. A Rússia foi obrigada a abandonar parte do território conquistado no seu avanço para sul. A 12 de Novembro de 1893, foi assinado em Cabul um Acordo entre a Grã-Bretanha e o Afeganistão que reconfirmava o Acordo de 1873 e introduzia mais alguns dados relativos à delimitação das fronteiras. Através de uma troca de notas, a 11 de Março de 1895, a Rússia e a Grã-Bretanha estabeleceram um acordo em que definiam as esferas de influência britânica e russa a leste do lago Sari-Qul (Zorkul), o que envolvia também o Afeganistão, a Índia Britânica e a China. A 10 de Setembro de 1895, a fronteira entre o Afeganistão e o Império Russo ficou definida através de um novo conjunto de protocolos.

Na década de 1850, a expansão russa para o Oriente foi feita ao longo do Amur, rio que hoje materializa parte da fronteira entre a Rússia e a China. Em 1860, os Russos fundaram a cidade portuária de Vladivostok, na costa do Mar do Japão, perto da actual fronteira com a China e com a Coreia do Norte. A sua localização não favorecia os Russos por duas razões: porque o gelo de Inverno impedia a normal navegação dos navios que utilizavam o porto (temperatura média anual de 4.9º C) e porque a saída para o Oceano Pacífico era facilmente controlada pelo Japão.

A Rússia tinha a ambição de aceder aos recursos e mercados do Extremo Oriente antes que as outras Grandes Potências o conseguissem e para isso necessitava de um transporte mais rápido. O caminho de ferro construído entre São Petersburgo e Vladivostok percorre cerca de 9.600 Km enquanto os navios que liguem estas duas cidades terão de percorrer à volta de 25.000 Km se transitarem pelo Canal de Suez ou 32.000 se seguirem a rota do Cabo. No início do século XX, um comboio demoraria entre quinze a vinte dias a percorrer aquela distância (hoje demora seis ou sete dias) enquanto um navio demoraria mais de um mês pela rota mais curta.

As Grandes Potências europeias estavam já empenhadas em obter a sua parte do decadente Império Manchu. Os Alemães foram os primeiros a solicitar uma base naval e uma estação de carvão na costa norte da China para poderem abastecer e fazer a manutenção da sua frota do Extremo Oriente. A Rússia obteve em 1895 a permissão para se instalar em Poto Arthur. O Reino Unido tinha, ao entrar no século XX, o território de Hong-Kong, desde 1841, e as concessões de Xiamen, desde 1852, Tianjin desde 1860, Hankou, Jiujing, Zhenjiung e Guangzhou, desde 1861, e o território arrendado em Weihaiwei, desde 1895 (ver o artigo «8 - A Guerra Russo-Japonesa». Na região, Bélgica, Itália, Portugal, França e Japão detinham igualmente, sob vários estatutos, territórios na China.

Em 1903-1904, o Reino Unido invadiu o Tibete. A questão que aqui se colocava era em muitos aspectos idêntica à do Afeganistão, ou seja, evitar que a Rússia exercesse aí a sua influência e conseguisse estabelecer uma base para invasão da Índia. Perante tal possibilidade (remota), o Governo britânico pretendeu transformar o Tibete em mais um estado tampão. O fracasso das negociações com o governo do Tibete levou à invasão em 1903 pelas forças da Índia Britânica. A retirada destas forças só foi realizada após a conclusão de um acordo em 1907, apesar de este território fazer parte do Império Chinês desde o século XVII.

A principal oposição entre a Rússia e o Reino Unido no Extremo Oriente resultava da diferente política económica e da forma como as Potências entendiam que podiam explorar os recursos chineses. Enquanto a Rússia pretendia apropriar-se de território onde tencionava manter o exclusivo das suas actividades, o Reino Unido defendia uma política de Porta Aberta que defendia que deveriam existir as mesmas condições comerciais das Grandes Potências na China. Em 1904-1905, durante a Guerra Russo-Japonesa, o Reino Unido, aliado do Japão, limitou a sua intervenção ao campo da diplomacia.

A rivalidade anglo-russa no Médio Oriente

A Europa no início do século XX

No início do século XX, as Grandes Potências Europeias alinhavam-se em dois sistemas de alianças e acordos. De um lado a Tríplice Aliança, formada em 1882, pela Alemanha, Áustria-Hungria e Itália; do outro lado, a Aliança Franco-Russa, estabelecida em 1892. O Reino Unido quebrou a sua política de “esplêndido isolamento” ao realizar uma aliança com o Japão, em 1902, enquanto na Europa, na aproximação à França, não foi além de um acordo, a Entente Cordiale, direccionado para a resolução de conflitos coloniais. A entente entre o Reino Unido e a França foi posta à prova durante a Primeira Crise de Marrocos (1905-1906), tornando-se mais sólida e dando origem a conversações entre os Estados-Maiores britânico e francês tendo em vista a eventualidade de uma guerra na Europa. Mesmo neste último caso, não existiu mais do que um acordo que a nada obrigava o Reino Unido. A Rússia, abalada pela derrota sofrida na Guerra Russo-Japonesa (1904-1905) e a braços com a Revolução de 1905, procurava criar condições para uma recuperação económica e militar. Assim, a França mantinha então uma “ligação forte” com a Rússia, sob a forma de aliança defensiva, e uma “ligação fraca” com o Reino Unido, sob a forma de entente.

O grande desenvolvimento industrial que então se verificava facilitou o estabelecimento das Potências europeias em quase toda a África e muitas regiões da Ásia. Tanto no Médio Oriente como no Extremo Oriente, as Potências europeias encontraram um campo propício aos seus investimentos, normalmente sustentados pela força militar. Entretanto, dois Estados não europeus, os Estados Unidos da América e o Japão, ganhavam relevo entre as Grandes Potências do mundo, com destaque para os EUA. As principais Grandes Potências eram ainda europeias, mas as relações internacionais, isto é, as interacções entre Estados - entidades inteiramente soberanas – ganharam uma dimensão verdadeiramente mundial. Esta nova amplitude das relações internacionais, que já vinha a ganhar forma ao longo do século XIX, exigia mais e melhores comunicações o que correspondeu ao aumento significativo da quantidade e da qualidade dos meios de comunicação e de transporte, recursos materiais e infra-estruturas que exigiam avultados recursos financeiros que o Governo russo obtinha nos mercados internacionais, especialmente em França.

Após a Guerra Franco-Prussiana (1870-1871), Bismarck construiu um sistema de alianças que permitiu manter a paz na Europa, favorável à sua política de desenvolvimento do recém-formado Império Alemão. Esta afirmação é verdadeira ao excluirmos os conflitos nos Balcãs, o que inclui a Guerra Russo-Turca de 1877-1878. A subida ao trono alemão de Guilherme II, em 1888, a saída de cena de Bismarck em 1890 e a sua substituição por governantes de qualidade muito inferior à daquele estadista, conduziram a transformações importantes na política alemã que, em termos de Negócios Estrangeiros, enveredou abertamente pela Weltpolitik (Política Mundial), que procurou aumentar a influência da Alemanha no cenário internacional e teve como consequência a criação de novos focos de tensão que, na Europa, tiveram o seu ponto alto nas crises de Marrocos (1905-1906 e 1911) ou a Anexação da Bósnia pela Áustria-Hungria em 1908.

A rivalidade anglo-russa

No quadro que acabámos de descrever, entre o Reino Unido e a Rússia existiam zonas de atrito: o Médio Oriente, por causa da Turquia e do controlo dos Estreitos do Bósforo e Dardanelos; a Ásia Central, porque os britânicos viam na expansão russa uma ameaça à Índia; o Extremo Oriente, porque o Império Chinês era, embora de forma diferente, objecto de cobiça para ambas as Potências, além de todas as outras acima mencionadas.

A rivalidade anglo-russa no Médio Oriente

O objectivo russo no Médio Oriente era materializado por Constantinopla. Dominar a capital do Império Otomano significava dominar os Estreitos do Bósforo e de Dardanelos, ou seja, dominar a passagem entre o Mar Negro e o Mar Mediterrâneo e, desde Novembro de 1869, ter acesso fácil ao Canal de Suez. Este é um objectivo que os Russos perseguem pelo menos desde finais do século XVII. Com a Guerra Russo-Turca de 1768-1774, os Russos conquistaram o sul do Mar Negro e, em 1783, anexaram a Crimeia que, nove anos antes, com a ajuda dos Russos, tinha ganho a sua independência do Império Otomano. Estes factos aconteceram durante o reinado (1762-1796) de Catarina a Grande (1729-1796). Nesse mesmo ano começou a ser construída a base naval de Sebastopol onde os Russos sediaram a sua frota do Mar Negro. Os navios de guerra russos estavam agora a dois dias de Constantinopla.


O bom relacionamento entre a Rússia e o Reino Unido manteve-se até 1853, apesar dos avanços russos em direcção ao Afeganistão e à Índia causarem receio aos Britânicos. Estes preocupavam-se particularmente com a nova linha férrea russa, então parcialmente construída, que se estendia até às fronteiras do Afeganistão e da Pérsia e que, quando concluídas, tornariam possível a Rússia transportar rapidamente as suas forças, o que iria exigir esforços redobrados aos Britânicos. Em 1827, uma esquadra russa participou conjuntamente com as esquadras francesa e britânica na Batalha de Navarino (20 de Outubro) durante a Guerra da Independência da Grécia (1821-1829).

Quando, em 1844, o czar Nicolau I visitou a rainha Vitória em Londres, houve conversações entre as duas Potências das quais resultou um acordo para ambas cooperarem perante o colapso do Império Otomano, que parecia iminente, ou no caso de este ser atacado por qualquer outra Potência. Entretanto ambas as Potências concordaram em tentar manter o Império Otomano e ambas concordaram em discutirem um acordo sobre as acções a tomar no caso de se tornar claro que não seria possível garantir a sua existência. Este foi um acordo puramente verbal e muito vago no que respeita às acções a tomar e ao seu timing.

A visita de Nicolau I à Grã-Bretanha (1844) ocorreu entre 31 de Maio e 9 de Junho. Em Setembro, Karl Nesselrode, o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, nascido em Lisboa, em 1780, foi a Londres e apresentou um memorando que continha os termos do acordo verbal entre os dois governos, mas para os Britânicos o acordo obtido em Junho não era mais que «a series of polite generalities rather than a basis for action.» George Hamilton-Gordon, 4º conde de Aberdeen, Secretary of State for Foreign Affairs, limitou-se a declarar que esperava que as ideias contidas no memorando continuassem presentes em futuras negociações sobre o Médio Oriente. Desta forma, a ligação ao que fora acordado com Nicolau I apenas comprometia o Governo (1841-1846) de Sir Robert Peel (1788-1850). Os sucessores de Peel entenderam não estarem comprometidos com esse acordo.

A “questão dos Lugares Santos”, na Palestina, mostrou a fragilidade das relações entre a Rússia e o Reino Unido. Jerusalém, Nazaré e Belém encontravam-se integradas no Império Otomano. A guarda e manutenção dos Lugares Santos estava a cargo de monges católicos e ortodoxos e, no início do século XIX, os monges ortodoxos adquiriram uma posição preponderante nesta tarefa porque o número de peregrinos da Igreja Ortodoxa era muito superior ao da Igreja Católica e das diversas igrejas protestantes. Os governos russo e francês empenharam-se em apoiar estes peregrinos e os respectivos monges, mas gerou-se uma rivalidade entre Russos e Franceses sobre o controlo dos Lugares Santos. O Governo Otomano, cuja fraqueza não lhe permitia impor soluções, procurou equilibrar a situação, mas os Franceses exerceram pressão e enviaram um navio de guerra para Constantinopla. A Rússia exigiu assumir a responsabilidade por todos os Lugares Santos no Médio Oriente. Nicolau I enviou instruções ao representante russo junto do governo otomano: «se a Turquia não ceder, então o embaixador extraordinário deve ameaçar com a destruição de Constantinopla e a ocupação dos Dardanelos.»

Este despacho de Nicolau I mostra as verdadeiras intenções da Rússia, que pouco tinham a ver com os Lugares Santos, os monges ou os peregrinos. É certo que o Governo russo era pressionado para tratar essa questão, mas esta não podia justificar uma invasão da Turquia. O controlo dos Estreitos e o acesso da marinha de guerra russa ao Mediterrâneo eram a causa real desta atitude. Perante a ameaça à integridade do Império Otomano, a França e o Reino Unido apoiaram o Sultão que rejeitou as propostas russas. Os Russos avançaram com as suas tropas para a Moldávia e Valáquia (actual Roménia), então sob suserania turca. A 23 de Outubro de 1853, a Turquia declarou guerra à Rússia.

Uma esquadra turca foi destruída em Sinope, a 30 de Novembro, pela frota russa do Mar Negro. A 3 de Janeiro de 1854, com autorização dos Turcos, as esquadras francesa e britânica atravessaram os estreitos e entraram no Mar Negro. Foram desencadeadas acções diplomáticas para obrigar os Russos abandonarem os territórios conquistados, mas sem resultado. A 10 de Abril, a França e o Reino Unido assinaram um tratado de aliança a que aderiu também a Turquia e, no dia seguinte, a Rússia declarou guerra à França e ao Reino Unido. Tinha início a Guerra da Crimeia que opôs a França, o Reino Unido e a Turquia contra a Rússia. A partir de Janeiro de 1855, ao Reino da Sardenha entrou na guerra ao lado das Potências aliadas.

A Guerra da Crimeia terminou com a derrota da Rússia que foi obrigada a aceitar os termos do armistício assinado em Paris a 28 de Fevereiro de 1856 e do Tratado de Paris de 30 de Março desse ano. Este tratado era composto por trinta e cinco artigos, uma Convenção relativa aos Estreitos do Bósforo e de Dardanelos e uma Convenção relativa «ao número e à força dos navios de guerra que as Potências costeiras manterão no Mar Negro». O artigo 10º do Tratado de Paris referia que as normas estabelecidas no Tratado de Londres de 13 de Julho de 1841 – sobre o encerramento dos Estreitos – eram revistas por comum acordo das Potências signatárias (do Tratado de Paris de 1856) e remetia o texto com as alterações adoptadas para uma Convenção em anexo, a Convention des Dètroits cujo artigo 1º estipulava o seguinte:

«ARTICLE PREMIER. – Sa Majesté le Sultan, d’une part, declare qu’il a la ferme résolution de maintenir, à l’avenir, le principe invariablement établi comme règle de son Empire, et en vertu duquel il a été de tout temps défendu aux bâtiments de guerre des Puissances étrangères d’entrer dans les détrits des Dardanelles et du Bosphore, et que, tant que la Porte se trouve en paix, Sa Majesté n’admettra aucun bâtiment de guerre étranger dans les dits détroits.

Et Leur Majestés l’Empereur des Français, l’Empereur d’Autriche, la reine du Royaume-Uni, de la Grande-Bretagne et d’Irlande, le Roi de Prusse, l’Empereur de toutes les Roussies et le Roi de Sardaigne, de l’autre part, s’engagent à respecter cette détermination du Sultan et à se conformer au principe ci-dessus énoncé.»

Para além das restrições ao trânsito de navios de guerra nos Estreitos, o Tratado de Paris estipulava no seu artigo 11º que o Mar Negro ficaria “neutralizado”, ou seja, eram impostas limitações severas à existência de meios navais de guerra naquele mar. A Convenção relativa ao Mar Negro, em anexo ao Tratado, definia os termos dessas restrições:


«ARTICLE PREMMIER. – Les Hautes Parties contractantes s’engagent mutuellment à n’avoir dans la mer Noire d’autres bâtiments de guerre que ceux dont le nombre, la force et les dimensions sont stipulés ci-après.

Art. 2. – Les Hautes Parties contractantes se réservent d’entretenir chacune, dans cette mer, six bâtiments à vapeur de cinquante mètres de longueur à la flottaison, d’un tonnage de huit cents tonneaux au maximum, et quatre bâtiments légers à vapeur ou à voile, dúne tonnage qui ne dépassera pas deux cents tonneaux chacun.»


A Rússia perdia desta forma a possibilidade de manter uma frota de guerra no Mar Negro. O objectivo do Reino Unido, o de impedir o acesso da marinha de guerra russa ao Mediterrâneo, ficava então reforçado porque o Tratado de 1856 acrescentava a neutralização do Mar Negro às restrições já existentes no Tratado de Londres de 1841. Após a abertura do Canal de Suez, em Novembro de 1869, estas disposições tiveram especial importância relativamente à protecção da rota da Índia já que a utilização daquela obra permitia à marinha britânica economizar 8.200 Km na viagem entre a Grã-Bretanha e a Índia. Já a frota russa do Báltico teria de atravessar os estreitos entre a Dinamarca e a Península da Escandinávia e de enfrentar a Royal Navy no Mar do Norte para chegar a outras regiões do Globo.

Após a Guerra da Crimeia, a Grã-Bretanha e a Rússia encontravam-se nitidamente em campos opostos no que respeita às questões do Médio Oriente que, na época, estava dominado pelo Império Otomano. Os Estreitos e, portanto, Constantinopla, continuavam na mira dos russos. «A fixação com a capital otomana foi […] uma constante no Império Russo, que a denominava de Tsargrado, a “cidade de César”, tanto por seu simbolismo como por sua importância em relação aos estreitos».

O Tratado de Paris viria a ser denunciado pela Rússia em 1871. Com a atenção europeia concentrada na Guerra Franco-Prussiana (1870-1871), Alexander Gorchakov, o chanceler russo (27 Abril 1856 a 9 Abril 1882), com o apoio de Bismarck, o chanceler alemão (21 Março 1871 a 20 Março 1890), denunciou as disposições do Tratado de Paris que os Russos consideravam vexatórias por não lhes permitirem dispor de uma frota de guerra ou fortificações costeiras no Mar Negro. Os Britânicos protestaram e foi realizada uma conferência internacional em Londres, em Março de 1871, para tratar este tema. Os Russos, contudo, conseguiram manter a sua posição. Ficava revogado o princípio da neutralidade do Mar Negro.

No conflito entre a Rússia e a Turquia, em 1877-1878, o Reino Unido voltou a tomar posição em defesa da integridade da Turquia. Assinado o Tratado de San Stefano (1878), foram a Áustria-Hungria e a Grã-Bretanha que forçaram a Rússia a recuar e a participar no Congresso de Berlim que alterou muitas das disposições de San Stefano. Esta derrota diplomática da Rússia levou a opinião pública russa a reagir contra a Áustria-Hungria, Alemanha e Reino Unido. As relações entre o Reino Unido e a Turquia, no entanto, degradaram-se porque a Turquia não avançou com as reformas necessárias e acordadas com as Grandes Potências europeias. Entretanto, o líder do Partido Liberal, William Ewart Gladstone (1809-1898), que sucedeu ao Conservador Benjamim Disraeli (1804-1881) em 1880, aceitou a necessidade de manter o Império Otomano, mas apenas porque o seu colapso envolvia uma grande ameaça para a paz na Europa e porque se opunha a que a Rússia dominasse Constantinopla.

No dia 11 de Julho de 1878, dois dias antes de terminar o Congresso de Berlim, o Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, Robert Gascoyne-Cecil, 3º marquês de Salisbúria (2 Abril 1878 a 28 Abril 1880), tinha declarado as obrigações do Reino Unido relativamente ao fecho dos Estreitos estavam limitadas a um acordo para respeitar a independência das decisões do Sultão sobre o assunto, embora essas decisões se devessem conformar com o espírito dos tratados em vigor. Isto significava que o Sultão podia autorizar uma frota britânica a passar através dos Estreitos para entrarem no Mar Negro. O representante russo, Pavel Andreyevich Shuvalov (1830-1908), fez saber que era entendimento do Governo russo que as obrigações resultantes da aplicação dos trados aplicavam-se a todas as Potências europeias, umas em relação às outras e não meramente ao Sultão. A declaração britânica não teve outro efeito imediato para além de acentuar o sentimento antibritânico na Rússia.

O ambiente de desconfiança entre os governos turco e britânico acentuou-se e a influência britânica no Império Otomano entrou inevitavelmente em declínio relativamente a outras Potências europeias. O Governo turco voltou-se abertamente para a Alemanha e para a Áustria-Hungria, com quem tentou uma aliança. A ideia foi afastada por ambas as Potências para não hostilizarem a Rússia, um dos elementos da, ainda existente, Liga dos Três Imperadores. No entanto, foram firmados alguns acordos e, em 1882, alguns oficiais alemães, sob a direcção do general von der Goltz, seguiram para Constantinopla com a missão de treinarem e desenvolverem o exército turco. Ao contrário dos Britânicos, os Alemães não mostraram interesse nas reformas políticas do Império Otomano.

«A entrada da Rússia na Liga dos Três Imperadores foi em grande parte o produto do seu receio e antipatia pela Grã-Bretanha.» [ANDERSON, 1978, p. 225] Foi neste cenário que os Russos, tendo presente a declaração de Salisbury a 11 de Novembro de 1878, procuraram estabelecer um acordo com a Turquia para a defesa dos Estreitos. O acordo não foi realizado, mas nos anos seguintes as relações turco-russas melhoraram significativamente. O mesmo não aconteceu com as relações anglo-russas na região e o Império Russo continuou a sua expansão gradual na Ásia.